SUMÁRIO EXECUTIVO

UM PARTIDO SOB O CÉU

A total subordinação do sistema judiciário de Hong Kong ao arbítrio do Partido Comunista, consagrada na Lei de Defesa Nacional, deixa cidadãos e empresas estrangeiras presentes na antiga colónia britânica num
limbo legal ainda mais atemorizador do que o vigente na República Popular da China.
O Artigo 28º, 4, enumera entre os crimes de «conluio com país estrangeiro ou elementos externos para colocar em perigo a segurança nacional» o acto de «impor sanções» o que se aplica, designadamente, a toda e qualquer empresa que acate, por exemplo, sanções norte-americanas ou da União Europeia visando a República Popular.
A Lei, em vigor desde 30 de Junho, aplica-se a crimes «contra a Região Administrativa Especial de Hong Kong cometidos fora da Região por pessoas que não tenham o estatuto de residente permanente», segundo o Artigo 38º.

O primado da extra-territorialidade

Esta disposição é mais gravosa do que a consagrada no Código Penal da República Popular que no Artigo 8º do Capítulo I («Disposições Gerais») ao punir estrangeiro que tenha cometido um crime fora do espaço soberano chinês ou contra cidadão chinês passível de pena não-inferior a três anos.
O Código Penal da República Popular exclui, contudo, crimes que não sejam punidos pela lei dos estados onde ocorreram, mas no caso da nova Lei de Segurança Nacional aplicável em Hong Kong tal salvaguarda é inexistente.
Qualquer acto tido por atentatório à segurança nacional nos termos da legislação de Hong Kong é punível independentemente do local onde ocorra e do que estipule a lei aí em vigor.
Instituições académicas, organizações não-governamentais, jornalistas, entidades religiosas, empresas passam a saber com o que contam.

A Agência de Zheng

Uma Agência de Segurança Nacional, designada por Pequim e isenta de supervisão judicial, supervisionará a aplicação da lei e investigação de crimes envolvendo países, entidades ou cidadãos estrangeiros.
A nova Agência goza, também, de poderes para actuar no caso de «incapacidade das autoridades locais», procuradores e órgãos policiais, ainda essas entidades se encontrem subordinadas a partir de agora a representantes nomeados pelo poder central em todas as questões pertinentes para a segurança nacional,
Aos poderes discricionários atribuídos à Agência dirigida por Zheng Yanxiong — originário de Guangdong, província adjacente a Hong Kong e Macau, onde fez toda carreira até ascender, em 2018, à chefia da organização provincial do Partido Comunista – acresce o cunho vago da definição de crimes de «secessão», «subversão», «terrorismo» e «conluio com forças estrangeiras».
O julgamento de crimes contra a segurança nacional estará a cargo de juízes nomeados pelo executivo da Região Administrativa Especial, neste particular assessorado por um delegado do governo central na recém-instituída Comissão para a Salvaguarda da Segurança Nacional, presidida pela chefe do executivo local, Carrie Lam.

Outra lei, outro mundo

As garantias processuais de suspeitos ou arguidos em processo penal próprias da common law, que ao abrigo do acordo sino-britânico de 1984 deveriam vigorar por 50 anos após a transferência de soberania a 1 de Julho de 1997, não se aplicam em questões de segurança nacional.
Por definição na República Popular o «segredo de estado» cobre tudo o que as autoridades considerem atentatório dos interesses do Partido Comunista e Hong Kong não é excepção.
A dispensa de júri e julgamento à porta-fechada estão previstos na Lei (Artigo 46º) que admite a intervenção da Procuradoria-Geral de Pequim para designar procuradores e tribunais para investigação e julgamento em tribunais não-especificados (Artigo 56º) de casos particularmente sensíveis e complexos.
Ao Comité Permanente da Assembleia Nacional Popular em Pequim cabe a última palavra na interpretação da Lei, seus patibulares seis capítulos e 66 artigos.

Tudo o que a terra abarca

Caiu o pano sobre a autonomia de Hong Kong, Macau pouco conta e Taiwan teme pelas garantias de defesa que Washington possa de facto oferecer.
Xi Jinping multiplica os órgãos de segurança de estado, seus comités de supervisão, agências de coordenação, e um dos mais recentes, criado em Abril, é o grupo de trabalho «China Segura», a cargo de Guo Shengkun, membro da Comissão Política do Partido.
Informava a imprensa oficial de Pequim, a abrir esta semana, que Guo lidera os esforços para «reprimir impiedosamente actos contra a segurança do sistema político», conter desordens e solucionar disputas provocadas pela pandemia de coronavírus.
Outra frente, portanto, num combate incessante em que o Partido Comunista se arroga o divino mandato do céu dos imperadores de antanho, impondo a suprema ordem de um estado perfeito sobre tudo o que o céu cobre, o mar espelha e a terra abarca.

barradas.joaocarlos@gmail.com
jornalista
assina esta coluna semanal à terça-feira no Jornal de Negócios

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