Atenção ao Intervalo Entre o Caos e o Comboio

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O Santos Narciso é uma instituição da imprensa açoriana. Envaidece-me a sua leitura generosa.
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Um livro de poesia cheio de Filosofia:
Nesta semana, a minha opinião no “Atlântico Expresso”, felicitando o autor, Alexandre Borges, o filósofo dos “Mal-Amanhados”
Atenção ao Intervalo Entre o Caos e o Comboio
Já o tenho há meses, esperando, entre muitos, que lhe pudesse chegar, porque nem sempre lemos o que queremos, nem com a rapidez que queríamos. Coisas da idade! Num dia destes, abri-o casualmente e comecei a ler “Fantasmas não frequentam funerais”: Quedei-me: “Fantasmas, digo-te eu, / não frequentam funerais / Mas nas folgas e dias santos / Assombram por conta própria / com frequência / a frequência dos anjos-da-guarda.”
Claro que não mais deixei o livro, lendo-0, relendo, porque poesia é assim: palavras que se vão bebendo e que em cada leitura vão ganhando dimensões diferentes.
Alexandre Borges que já conhecia do belo livro “O Boato – Introdução ao Pessimismo”, da Editora Companhia das Ilhas e dos “Mal-Amanhados – Os Novos Corsários da Ilhas”, inesquecível série de programas da RTP/Açores, imortalizado em livro com chancela “Letras LAVAdas”, cedo me fascinou pelo lado mais belo que sinto sempre que leio um poema e que é a intimidade e cumplicidade que une palavra e pensamento, como se nunca conseguíssemos atingir o quanto e quando uma está ao serviço do outro.
Neste livro, mais uma edição da “N9na Poesia”, Alexandre Borges mostra-nos a sua faceta profundamente humanista e inquieta, mas ao mesmo tempo acutilante e destemida, como naquele magistral poema “ O segundo rosto de Cristo” (pgs 50/51): “… E a nós disseram-nos apenas / como era o Cristo da cruz; / não o da ressurreição”.
Não conviria mais a uma religião o contrário? / Se o sudário era a mortalha com que Arimateia / cobria a carne de Cristo depois da crucificção? / A teia, a talha, o cristo morto, o cristo homem / porque o repetimos por toda a parte? / Porque não ao outro que era tão diferente / que já nem os melhores amigos re-conheciam / Só finalmente pelo gesto, alma, forma / de partir o pão?”
Tocou-me a inquietude e a desconstrução de séculos que aqui se condensa e penso no que diria Artur Cunha de Oliveira ao ler este poema, ele que sempre foi um cultor do “Senhor Jesus da Ressurreição” em contraponto com o da Cruz que foi só caminho e não meta ou destino.
Não me espantou, por isso, que Alexandre Borges tenha dedicado este livro ao Professor e Filósofo Mário Cabral, inesquecível Mestre no ensino e na escrita, falecido em 1917 na cidade de Angra. Numa entrevista concedido a António Pedro Costa, no jornal “Correio dos Açores” (11 de Abril de 2021) o autor explicava: “O Mário foi meu professor de Filosofia e, depois, durante 20 anos, um dos meus mais queridos amigos. A sua morte, como a sua vida, afectou profundamente aqueles que o conheceram. Penso que o Mário foi uma figura enorme que, talvez pela natureza reservada da personalidade e pela complexidade da obra, não foi devidamente reconhecida nos Açores e no país, mas cabe-nos a nós, amigos e admiradores, ajudar a que, a pouco e pouco, mais pessoas o descubram. Morreu enquanto eu escrevia o “Atenção…” e afectou, como é óbvio, a sua escrita. Não é suposto, na minha idade ou sequer na dele, começarmos a ver morrer os nossos melhores amigos – ainda por cima, aqueles com quem mais aprendemos sobre arte em geral e poesia em particular. Não poderia ter dedicado o livro a outra pessoa”.
Como se pode ver pela apresentação editorial desta obra, “o nome deste livro é um pequeno jogo de palavras com um anúncio que se lê e ouve numa das principais estações do metropolitano de Lisboa, a do Marquês. O aviso real diz “atenção ao intervalo entre o cais e o comboio”. Ao autor pareceu-lhe que, se trocássemos “cais” por “caos”, aumentávamos exponencialmente o âmbito do alerta, transformávamo-lo numa espécie de grande advertência existencial. Vivemos entre o caos de todas as possibilidades e solicitações, num mundo com cada vez mais notificações e menos referências, e a ordem maquinal de comboios, relógios, horários e outras rotinas que nem questionamos. Mas, se atentarmos ao intervalo entre uma coisa e outra, podemos encontrar a poesia, o fascínio, o deslumbre. E não ser esmagados nem pelo comboio, nem pelo caos”.
E o segredo é mesmo “olhar o intervalo”. Se na música a melodia e harmonia de fazem de jogos de “intervalos”, também na poesia sentimos esta liberdade criativa que eleva e ao mesmo tempo desinquieta: “Um homem é um homem desfeito / Portanto não se faz homem /Desfaz / Ele é o que já não é / Aquilo de que desistiu / As coisas que perdeu / A dor que juntou / E a luta que lhes deu… // Um homem / é o que sobrou”.
Quem não sentiu isto na vida? O que resta depois do caos que nos traz o tempo e o destino é o que somos nas diversas fases da vida porque há sempre o tal intervalo entre o caos momento e o comboio do tempo que vai para a estação desconhecida onde desembarcaremos.
Alexandre Borges no seu modo de escrever não esconde uma alicerçada base filosófica, bem patente em poemas como “Lampe, o criado de Kant” (pg. 11), ou aquele extraordinário “Relativamente à gravidade” (pg. 39), mas, ao mesmo tempo brinda-nos com mordaz ironia :“o Natal é quando um homem crescer”… ou ainda “Das coisas que mais nos distingue dos anjos é isto de estar sempre a pedir factura”.
Alexandre Borges não necessita de qualquer apresentação, mas ficam aqui alguns elementos extraídos do próprio livro. É natural de Angra do Heroísmo (1980). Publicou “Todas as Viúvas de Lisboa” (Quetzal, 2009), “Histórias Secretas de Reis Portugueses” (Casa das Letras, 5ª edição) e “O Boato — Introdução Ao Pessimismo” (Companhia das Ilhas, incluído no Plano Regional de Leitura dos Açores), entre outros. Assinou, como autor ou argumentista, programas de televisão como “Zapping”, “Equador”, “Grandes Livros”, “A Arte no Tempo da Sida”, “Brainstorm”, “Na Corda Bamba”, “A Rede” ou “Mal-amanhados — Os Novos Corsários das Ilhas”. Foi editor de cultura de “A Capital”, crítico de cinema do “i” e é colaborador habitual do “Observador”.
Na entrevista que acima citei, ele mesmo se confessa “polígamo nas escritas. Há épocas em que queremos casar com o romance, noutras estamos apaixonados pela poesia, e noutras, na verdade, só precisamos de uma crónica. Dito isto, e apesar de todos os compromissos que é necessário fazer, é fascinante escrever para a imagem. E ainda sonho escrever um grande filme”.
Mesmo com um ano de atraso em relação à publicação deste “Atenção ao Intervalo Entre o Caos e o Comboio”, só posso dizer que é poesia que merece ser lida. É produto da nova geração de escritores açorianos que muito nos deve orgulhar. De facto, na casa dos 40, “Certamente um Homem” (pgs 17-21) é qualquer coisa de único e forte que dificilmente se esquece. Só lendo!
Parabéns, neste abraço, Alexandre Borges, por mais este belo livro e que continues a pensar o bairro onde agora vives – Alvalade – como uma ilha em Lisboa, “Lisboa onde há o Tejo, felizmente. Sem ele, um ilhéu sufocaria. É tão largo e tão próximo do mar que, não o substituindo, vai aplacando a dor”, com dizias na entrevista ao “Correio dos Açores”.
Santos Narciso
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