AS EMBIRRAÇÕES DE PAULA SOUSA LIMA

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Crónica de sábado no Açoriano Oriental:
Acerca das palavras XII: embirrações
Ter embirrações é um direito que a todos assiste e que muito devemos estimar. É um direito universal e inalienável, conquanto não esteja consagrado em documento algum, sempre o foi, mesmo nos sombreados tempos da ditadura, em que praticamente nenhum direito tínhamos. Tínhamos este, muito natural, parte integrante do nosso viver, e muito útil. É que ter embirrações nos permite vazar algum do nosso fel sem que prejudiquemos seja quem for, sem que façamos mal a outrem ou a nós próprios. Embirrar com alguma coisa ou com alguém não é votar-lhe ódio nem ter-lhe aversão nem querer-lhe mal, nada disso, é simplesmente sentir um certo mal-estar na sua presença, um arrepio na coluna e nos pelinhos dos braços, uma comichão nas mãos, sintomas que, de resto, passam, logo que do alvo da nossa embirração nos alongamos.
Eu, confesso, tenho bastantes embirrações, umas inconfessáveis, das quais nunca falo, nunca falei e nunca falarei, outras de que posso falar sem restrições. E destas últimas vão sendo conhecidas, pois não me consigo conter, as que dizem respeito ao uso da língua portuguesa. Embirro fortemente com o mau uso da nossa língua, confesso, creio, até, que o meu sentimento em relação a esse mau uso ultrapassa a mera embirração. E embirro, já o devo ter confessado algures, com certas palavras ou expressões de uso corrente e reiterado, nomeadamente com aquelas que configuram o politicamente correto e com aquelas que se tornaram clichés do falar/escrever. Assim, ao ouvir ou ler “invisual”, “inverdade”, “pessoa portadora de deficiência motora”, por exemplo, logo se me arrepia a coluna e se me eriçam todos os pelinhos dos braços, logo me sinto acometida de forte comichão nas mãos. Sintomas iguais me sobrevêm ao ler, sobretudo nas redes sociais, alusões às “princesas” e às “guerreiras”. Minhas senhoras, cavalheiros, busquem palavras mais criativas para se referirem às vossas filhas e às vossas mães, que ninguém pode com tanta princesa e com tanta guerreira.
Mas mais embirro, por estes dias, com a palavra “aguardar”. Embirro completa e solenemente com esta palavra, que, ultimamente, substitui a simples e escorreita palavra “esperar”. Ora um cidadão ou uma cidadã vai a uma repartição pública, pedir, sei lá, um documento qualquer, e é atendido/a por uma menina muito bem posta, com o cabelo muito esticadinho e as unhas muito bem polidas, com um sorriso todo medido para a ocasião, diz o cidadão ou a cidadã ao que vai, e a referida menina que responde? Responde invariavelmente: aguarde, por favor. E o cidadão ou a cidadã espera, ou melhor, aguarda, pois já ninguém espera, todos aguardam. Também acontece que o cidadão ou a cidadã telefone para um banco ou para uma empresa, sendo gentilmente atendido/a por uma menina, que terá o cabelo tão esticado como a da repartição pública e as unhas igualmente muito polidas, a qual, depois da natural saudação e de ouvir o pedido do cidadão ou da cidadã, diz: aguarde, por favor. E, como não há duas sem três, o cidadão ou a cidadã, ao ligar para o banco ou para a empresa, não é atendido/a senão por uma voz, voz essa que diz o quê? Aguarde, por favor.
Sendo eu uma cidadã, já me deparei inúmeras vezes com o “aguarde, por favor”. Coluna arrepiadíssima, pelinhos dos braços eriçadíssimos, mãos numa desfraldada comichão, digo: muito obrigada, eu espero, e enfatizo o “espero”, foi a foi a forma que desencantei para dizer da minha embirração. Até sinto, confesso também, alguma comiseração por estas meninas tão educadinhas como bem vestidas e bem penteadas e tão polidas como as respetivas unhas, que respondem como lhes disseram que respondessem, não o fazem por mal, muito pelo contrário, cuidam que estão a ser sumamente educadas e polidas. E não se pode dizer que não estejam a ser educadas e polidas. Eu, todavia, embirro com o “aguarde”. E estou no meu direito.
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