Apresentação d’ “O lugar da Trindade e outras narrativas”, de Telmo Nunes

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Apresentação d’ “O lugar da Trindade e outras narrativas”, de Telmo Nunes, na Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada – 9 de Fevereiro de 2023
Agradeço, reconhecido, o inesperado convite que o Dr. Telmo Nunes me fez para apresentar “O lugar da Trindade e outras narrativas”, numa casa de livros, como esta Biblioteca Pública, no coração da cidade e guardadora de parte significativa da memória da açorianidade.
Cumprimento o editor, José Ernesto Resendes e a editora Letras Lavadas, pela edição desta obra, que se insere numa estratégia comercial de publicação e divulgação de autores açorianos.
Digo autores açorianos, nos quais incluo Telmo Nunes que já é açoriano de coração, com uma escrita marcada pelos sinais que identificam e singularizam a literatura açoriana, como a têm teorizado Urbano Bettencourt e Vamberto Freitas.
“O lugar da Trindade e outras narrativas” é uma obra da literatura açoriana, de contos e narrativas. géneros pouco cultivados entre nós e até entendidos por alguns como géneros literários menores.
Na verdade, o conto e a narrativa exigem uma escrita incisiva e capacidade de contar uma história em poucas páginas. Se fosse uma prova de atletismo, seriam uma corrida de cem metros, enquanto um romance poderia ser uma meia-maratona. Bem, há alguns romances que somam várias maratonas…
“O lugar da Trindade” – título do último conto do livro – atrai o leitor para um lugar imaginário, na ilha de São Miguel, situado numa zona indefinida, próxima das Feteiras. Um lugar de homens do mar, marcados pelo tempo e pelas escolhas, pela luta desigual com o mar, que é afinal o destino de qualquer açoriano: “era o mar a lançar-lhe a rede. O mar. Sempre o mar” (pg. 125).
Neste lugar inexistente – será mesmo assim? – a história do futuro escreve-se com o medo: “há já muitos epitáfios por escrever” (pg. 122).
Mas o medo não paralisa o desejo dos homens, mesmo quando sabem que “as ilhas não eram para gente que ousasse o sonho” (pg. 117).
Intencionalmente, o autor confunde o leitor, levando-o a acreditar que reconhece a Trindade, na ilha de São Miguel, a partir de fragmentos do quotidiano, do registo dos gestos, da entoação do mar, adivinhada a cada página.
Puro engano: a Trindade convoca outros lugares imaginários e bem podia estar descrita no “Dicionário de Lugares Imaginários”, de Alberto Manguel e Gianni Guadalupi, um catálogo de lugares criados pela literatura, povoados de criaturas de fantasia, costumes estranhos, homens singulares ou ilhas que desaparecem no mar.
Telmo Nunes acolheu palavras de outros escritores – como José Saramago, Tolstoi, Paula de Sousa Lima, Miguel Torga ou Emanuel Jorge Botelho – para epígrafes de alguns contos e que funcionam como chave para a leitura e interpretação por cada leitor. “Fisicamente, habitamos um espaço, mas, sentimentalmente, somos habitados por uma memória”, diz Saramago (pg.11).
Entre um certo realismo mágico, de que a Trindade é o expoente, insinuado no prefácio de Pedro Almeida Maia, que invoca a Macondo, de Gabriel García Márquez como referência literária para este lugar – que é lugar nenhum, podendo ser todos os lugares – e um neo-realismo que se descobre nos contos de pendor social ou de revelação de condutas sociais e modos de vida, Telmo Nunes escreve sem pudor sobre as condições penosos dos que viviam nestas ilhas, no início do século XX, escravos da terra e do mar, numa persistente pobreza.
Há contos que são um exorcismo da memória, da longa memória dos lugares da infância, em que a felicidade cabe nas pequenas coisas, nos gestos pueris, no primeiro beijo, no primeiro desejo amoroso, nas maçãs roubadas no pomar do senhor Valentim: “as maçãs do senhor Valentim não tinham sumo, mas sabiam a vitória” (pg. 61).
Há contos que provocam o sorriso, pela atitude quase burlesca do homem que abandona os amigos e a rodada seguinte para ir à Praia das Melancias, transformada num tapete impenetrável de águas-vivas, que impedem o mergulho estival e o levam a regressar cabisbaixo à mesa de amigos.
Outros são a denúncia veemente da violência doméstica, crime com elevados índices nos Açores, socialmente tolerado durante anos, em que as mulheres eram – e ainda são – vítimas silenciosas. O “Bom ensinamento” (título do conto, pg. 75) resume-se à agressão da mulher pelo homem, como prova de quem manda em casa.
Outro, ainda – “Nascida do viço de um cravo” – é o elogio da liberdade de uma mulher que, em tempo de ditadura dos anos sessenta do século XX, desafiando as convenções da época e escudada no seu estatuto social e nome de família, usa a fortuna familiar para inaugurar obras de apoio social, apoiar os mais pobres, construir um hospital e promover a educação das mulheres.
Telmo Nunes enfrenta, em dois contos, o problema do consumo das drogas duras e o rasto de destruição pessoal e social que elas provocam.
Numa linguagem forte, o autor não hesita numa descrição crua da decadência física e da falência do corpo, até à morte de Ana, personagem do conto “Fórmula C21H23N05” – a fórmula química da heroína – toxicodependente, que morre sem que o narrador a possa reencontrar num derradeiro momento.
A mulher que foi um amor de infância, perdido na lonjura do tempo, regressa ao fim de anos, perante a contradição da atitude a tomar: corresponder ao apelo para uma visita ou interpretar o pedido como a tentativa de uma toxicodependente obter dinheiro fácil para comprar a próxima dose?
O dilema corrói o narrador/personagem do conto, dividido entre a saudade e a incerteza: “desse-se o caso de a saudade enrugar, dir-se-ia que a que me acompanhava e que comigo dividia a existência era já vista, pelo menos, como bem entrada na idade” (pg. 71).
Noutro conto – “O Repatriado” – Telmo Nunes não foge ao problema social dos repatriados – açorianos desenraizados das ilhas, que são devolvidos aos Açores pelas autoridades dos EUA, em consequência da prática de crime e consequente condenação. Depois de cumprirem uma pena, cumprem cá uma segunda pena de degredo, longe da família e dos amigos que ficaram para trás.
John Miles, que foi João Basílio, vive a indiferença social na terra que não o reconhece: “a revolta trouxe violência e agressões. Veio a rua e sentiu na pele a discriminação e o estigma” (pg. 91).
Neste imenso lugar da Trindade – afinal todos os contos se passam na Trindade imaginária – há uma geografia das solidões.
Dos que não chegam a cumprir o seu destino.
Dos que são enganados pela má-sorte.
Dos que partem para as Américas da abundância, com a ilha guardada no coração, em anúncio de regresso para o Livramento (“Azorean Refugee Act”, pg. 115) ou para qualquer outro lugar.
Dos que regressam, como se nunca tivessem o mundo como destino.
Dos que se tornam socialmente invisíveis.
Dos que sabem que o boletim meteorológico que anuncia sempre “céu geralmente muito nublado, com períodos de chuva, por vezes forte e persistente” (pg.83) é apenas uma metáfora para iludir os turistas.
Neste livro há um murmúrio do tempo, que arrasta as coisas, que corta os ossos, que fustiga a memória.
“Era uma vez o era uma vez da vida.
Quando na vida também moravam grandes
“coisas” pequeninas; um naco de pão guardado na algibeira de um calção em correria, uma pétala reencontrada na página de um livro muito amado, o cheiro de saudade que a sépia de um retrato colocava nas nossas mãos, o chamamento, mágico, do amolador de facas que percorria as ruas da cidade, a saudade do dia seguinte.
Aos poucos, as grandes “coisas” pequeninas foram deixando de ter lugar na casa dos nossos dias.”
(Emanuel Jorge Botelho, 30 Crónicas, II, Ed. Letras Lavadas e Artes e Letras, pg. 19)
Encontro, em alguns destes contos, um profundo sentido de misericórdia, entendida como compaixão, como saída em direcção ao outro, de coração aberto.
A misericórdia resgata o outro, que chora em solidão. Escreve Telmo Nunes: “o choro em solidão é o pior deles todos: corrói mais do que qualquer outro, por não se poder repartir, tem vontade própria” (pg. 44).
Num tempo hedonista, de prazeres fáceis, de sentimentos descartáveis, os contos deste livro têm um traço comum: dizem-nos que dentro de cada um de nós não há apenas coisas belas, luminosas.
Somos confrontados com as contradições dos nossos sentimentos, dos desejos. No fundo, com a contradição da nossa própria condição.
Podemos sempre escolher o caminho, pois o destino não é uma maldição.
Não se pense que o autor constrói um manifesto desesperado sobre a vida. Telmo Nunes obriga-nos a fazer perguntas. Quem amamos? Que escolhas fazermos? O que nos resta da casa da infância? Onde guardamos as memórias? O que somos? Porque olhamos o mar?
A escritora Clarice Lispector criou uma lista de perguntas que sacodem o torpor dos dias. “Eu sou uma pergunta”, disse Clarice. Com o tempo, aprendemos que as perguntas são a gramática da vida.
Como escreve Daniel Faria, um poeta que morreu demasiado jovem, “é necessário voltar a entrar em casa, como quem chega ao dia seguinte, e sabe que ainda não amanheceu de vez” (“Sétimo Dia, Ed. Assírio e Alvim, pg. 113).
Assim se escreve a esperança.
(Créditos fotográficos das Letras Lavadas).
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Foi lançado ontem o mais recente livro de Telmo R. Nunes, “O Lugar da Trindade e Outras Narrativas”, no auditório da Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada. A apresentação esteve a cargo do Dr. Pedro Gomes. 📚
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Scott Edward Anderson

ParabénsTelmo! 📚🎉🎊
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Fátima Paz

Brilhante apresentação, como é teu apanágio.
Obrigada.
Um grande abraço.