APÓS A MORTE DO PAI PSICÓLOGA GERE EXPLORAÇÃO PECUÁRIA

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Exportação de gado em Santa Maria
Empresa familiar no feminino exportou no ano passado 67 contentores de animais vivos para o continente e um contentor de carcaças para a Madeira
Com a morte prematura do pai, Lissa Maria Figueiredo juntou-se à irmã e à mãe e deram continuidade ao negócio com quase 30 anos que o pai, Evaristo Figueiredo, construiu na zona da Zamba, em Vila do Porto.
Num mundo tradicionalmente masculino, a empresa tem seguido bom rumo e no ano passado conseguiram ex- portar 67 contentores de animais vivos – cerca de mil cabeças de gado – e pela primeira vez fizeram chegar um contentor de carne em carcaça à Madeira. A jovem empresária, que é também psicóloga, alerta que é necessário melhorar as condições do matadouro para se conseguir explorar mais esta vertente do negócio. A pandemia também trouxe constrangimentos, seja no preço da carne seja no facto de já não poderem embarcar tratadores de animais nos navios. Apesar de tudo, esta empresa familiar é como “um banco de três pernas” em que a mãe e as duas filhas – assessoradas pelos companheiros e por dois trabalhadores que se mantêm – esperam manter-se no mercado e continuar a ajudar as famílias marienses que dependem do gado para viver.
A vida de Lissa Maria Figueiredo, de Santa Maria, deu uma reviravolta em Maio do ano passado e a psicóloga na Unidade de Saúde de ilha de Santa Maria, teve de arregaçar as mangas e entrar num mundo que lhe era familiar mas ao mesmo tempo desconhecido.
O pai, Evaristo Figueiredo, tinha uma empresa de exportação de gado com uma lavoura própria há quase 30 anos e ao longo desse tempo teve um papel de grande impacto na economia mariense, já que muitas famílias vivem da actividade agrícola, principalmente da pecuária.
Com o falecimento do pai, havia compromissos a assumir e Lissa assim fez. “Na altura em que o meu pai faleceu já havia um embarque de gado planeado por ele para seguir para o continente, a minha irmã estava em São Miguel para ter bebé e eu assumi, porque as circunstâncias assim o exigiam. Se fosse ao contrário, acredito que a minha irmã tinha feito igual”, confessa.
E é assim que as duas irmãs, juntamente com a mãe, formam agora “um banco de três pernas”, como Lissa gosta de chamar à empresa familiar, “e faltando uma perna, o banco não se mantém”. Mas além das três mulheres que agarraram as rédeas da empresa “Evaristo Figueiredo”, Lissa Maria Figueiredo não esquece o apoio dado “pelos homens da casa, os nossos companheiros. E tudo só é possível porque mantemos dois trabalhadores que trabalhavam com o meu pai. Que ainda hoje são o nosso braço direito e o nosso braço esquerdo, literalmente”.
A jovem psicóloga, que continua a exercer, admite que o que a levou a dar continuidade ao legado do pai foi “o legado que ele deixou, as condições que ele deixou e pesou também os produtores pelo facto de ser uma ilha pequena e nos conhecermos, e ter sido abordada por alguns produtores. Juntando estes factores, tudo ajudou nesta tomada de decisão”.
Aos 35 anos, reconhece que muitas famílias dependiam da actividade de exportação do pai. E reconhece que “ninguém é insubstituível”, acreditando que caso não tivesse ficado com a empresa do pai “os produtores iam continuar a exportar, mas para a concorrência”. No entanto, Lissa Figueiredo recorda que “as qualidades que estes produtores viam no meu pai, o facto de ele ser uma pessoa honesta no seu negócio, de ser um pagador honesto, fez com que eu quisesse também dar esta continuidade”. E muitos produ- tores conseguem reconhecer na filha muitas das qualidades que o pai se honrava de imprimir no negócio.
Em que consiste exportar gado?
Para Lissa e para a irmã, agarrar na empresa de exportação de gado “foi uma tarefa grande, atendendo a que nunca estivemos envolvidas no negócio. Nem o meu pai permitia. Nós nunca tomámos a iniciativa de querer saber mais, nem ele o permitia”.
O que é certo é que este negócio familiar teve seguimento e é Lissa a responsável deste “banco de três pernas” pelo embarque dos animais enquanto a irmã gere a parte da lavoura “com a ajuda preciosa da minha mãe, porque a minha mãe é muito activa e nos facilita este papel que herdámos”.
Mas voltando à exportação do gado, Lissa Maria Figueiredo começa por dizer que “para termos condições de exportar gado temos de ter um cliente. Um cliente fiável, que seja bom pagador, que possa servir como referência e até nisso tivemos a sorte do meu pai nos deixar. Temos um cliente no continente, para onde exportamos, e também para a Madeira”.
Depois há toa a questão dos preços da compra e da venda, “que vão sofrendo consoante outras condicionantes. Tivemos a pandemia, que mexeu um pouco com os preços, e vamos comprando e vendendo consoante os preços que estão sendo preconizados no mercado”.
Tendo o comprador e tendo estabelecido os preços – junto dos produtores e junto dos comprador – “ temos que fazer um levantamento do número médio de cabeças de gado que vamos ter por embarque para podermos fazer o pedido do número de contentores. Há sempre a parte burocrática, dos papéis nos serviços agrícolas para o número de animais que vai circular”. Burocracias tratadas, é preciso combinar com os produtores “o dia para fazer as pesagens, que normalmente é sempre no fim de semana antes do dia de embarque. Estou logo de manhã com eles, o gado é pesado, é dividido por contentores consoante raça, peso e sexo, tem de ser alimentado e tratado até ao dia do embarque. Nesse dia eles fazem o transporte do gado para o cais, é dividido já por contentores porque está já organizado internamente”. É feita toda a documentação dos animais, é feito todo o processo depois para a facturação. E faz-se o pagamento dos produtores.
A jovem psicóloga e empresária admite que há sempre um risco dos animais não serem pagos, não só para si mas para todo o sector. “É um risco elevado. Trabalhamos com quantias elevadas de dinheiro. Por isso digo que é importante o cliente ser uma referência e tivemos a sorte de ter ficado com um cliente que é uma referência. Era para o meu pai e era para os produtores locais”, explica.
Tal facto levou a que, em 2020, a empresa Evaristo Figueiredo tivesse “feito circular mil cabeças de gado. 67 contentores de animais vivos e pela primeira vez enviámos um contentor de vacas em carcaça, de gado abatido para a Madeira”, explica.
Falta de capacidade do matadouro
E aumentar a exportação de gado em carcaça? “É sempre um mercado a explorar, mas temos muitas coisas a melhorar na ilha”, afirma a empresária. Primeiro, há que melhorar a capacidade do matadouro. “Neste momento, o gado que mandamos em vivo, se fosse para ser enviado em carcaça era impossível, porque o matadouro não tem essa capacidade para fazer este escoamento”, afirma. Aliás, essa pouca capacidade instalada até fez com que o primeiro envio de carcaças para a Madeira tivesse e ser adiado. “No ano passado tivemos alguma dificuldade e acabámos por enviar este contentor em Setembro, mas a verdade é que o cliente queria mais cedo e como não tivemos lugar no matadouro, tivemos que adiar para Setembro. Por isso acho que ainda há muitas coisas a melhorar até termos capacidade” no matadouro local.
Até porque a carne açoriana, e mariense em particular, “é bem valorizada e reconhecida. E a carne de Santa Maria também se diferencia a nível Açores e no continente ainda mais”.
Pandemia trouxe constrangimentos
Apesar de valorizada a carne mariense também sofreu alguns constrangimentos com a pandemia de Covid-19. Lissa Maria Figueiredo confessa não ter noção de preços dos anos anteriores mas admite que “houve descida de preços que se tem atribuído à pandemia”. Mas o volume de cabeças de gado exportadas manteve-se quase inalterado, “porque os produtores mantêm-se e por isso a este nível não sentimos diferença. E não se deixou de consumir carne nem de produzir animais”.
Mas há outros constrangimentos que vieram alterar as rotinas de quem vive deste negócio.
A empresária explica que actualmente “a nossa maior dificuldade tem a ver com os tratadores de animais, porque nos tem sido impedido embarcar boieiros da nossa confiança”. Ou seja, antes da pandemia havia um “tratador [boieiro] que embarca no navio e acompanha os animais até ao desembarque. Está na lei que animais vivos sejam sempre acompanhados por um tratador de gado”.
Mas em tempos de pandemia “não é permitido pessoas estranhas à tripulação nestas viagens. O que tem acontecido é pagarmos directamente aos funcionários do navio para irem cuidando dos animais”, explica.
Constrangimentos por ser mulher?
Além dos constrangimentos trazidos pela pandemia, Lissa Maria Figueiredo confessa que houve outros constrangimentos quando no início decidiram manter e avançar com o negócio.
Ser mulher “foi um entrave. Sem dúvida. Isto é um ramo de homens”, admite embora esclareça que “pessoalmente acho que não há trabalho de homens nem trabalhos de mulheres, mas eu, a minha irmã e a minha mãe somos as únicas mulheres que estamos neste ramo aqui em Santa Maria. Para uma primeira vez é sempre motivo de estranheza”.
Talvez não por serem mulheres mas “talvez tenham duvidado até das nossas próprias intenções”. Ou seja, “se íamos fazer só aquele primeiro embarque que estava já planeado pelo meu pai, ou se isto ia ser uma coisa que ia ter continuidade”.
Quanto a isso, a empresária acredita que “temos o tempo a nosso favor e o tempo há-de mostrar que também vamos conseguir manter isto, até quando acharmos que é possível”. Confessa que ainda “não consigo comprar os animais a olho como o meu pai comprava e sabia o que fazia”, mas a intenção é manter o negócio, até para manter o legado do pai.
“O que costumamos dizer é que vamos manter o negócio até o último produtor mostrar interesse em nos vender o gado. Não nos podemos esquecer que além desta empresa de exportação de gado, temos uma lavoura própria. Ou seja, temos sempre gado nosso para exportar. Por isso a nossa intenção é manter” o negócio. E admite que “a exportação de gado no feminino em Santa Maria é algo para continuar. Nunca posso pensar nisto de forma individual, mas no feminino enquanto uma equipa de mulheres, mas que também tem homens importantes a colaborar. Os da família e os que estavam já connosco”.
E quando a incerteza ou os problemas batem à porta – e “em quase um ano de actividade, têm aparecido alguns problemas de difícil resolução” – o tal “banco de três pernas” quase nem pensa por si e a primeira coisa que tentam fazer “é pensar se fosse o pai, como é que ele faria ou geria esta situação? Pensamos sempre como é que o meu pai faria”. E tendo esta premissa como base, “tentamos fazer o melhor que podemos, sem a ambição de ser como ele”. O certo é que até agora tem resultado e esta empresa familiar, coordenada por três mulheres num mundo tradicionalmente masculino, tem conseguido vingar.
(Carla Dias – Atlântico Expresso de 15/02/2021)
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Muito sucesso!
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