antónio MEGA FERREIRA

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POSTAL DO DIA
Mega Ferreira morreu com luz na mesa de cabeceira
1.
António Mega Ferreira foi a pessoa com maior capacidade de comunicar entre todas as que conheci.
Sentava-me e ouvia.
Sentava-me e não ousava interromper as palavras que na sua boca pareciam diferentes das nossas.
Fiz-lhe uma entrevista em 1999.
Uma conversa que publiquei no meu primeiro livro, “25 Portugueses”.
Depois disso estivemos algumas vezes juntos, gostava de almoçar no “Pap’Açorda”, diria que talvez tenha sido aí que aconteceu a nossa última conversa.
2.
O que posso acrescentar ao tanto que já se disse?
Acrescentar ao óbvio que é, ainda assim, o mais importante.
Que foi um dos mais cultos portugueses dos últimos 50 anos.
Que sendo um intelectual era, coisa rara, um enormíssimo fazedor.
Que sendo um fazedor era, paradoxo extraordinário, um enorme diletante.
Que sendo diletante adorava a vida, adorava apaixonar-se por pessoas, adorava perder-se em livros, em viagens, em óperas e teatros e quadros.
Que era radicalmente solitário, apesar de radicalmente necessitado de ser amado, de ser admirado.
Era vaidoso e absoluto.
A sua religião era o ateísmo, tinha aliás uma fé absoluta no ateísmo.
Era esmagador e falava-me várias vezes na pena de não escrever como os melhores, de não saber tocar piano, de não ter sido o melhor jornalista português.
“Querido António, é tempo de dizer que foste, mais do que todos, uma soma inigualável de qualidades. Ninguém em Portugal foi ao mesmo tempo tão bom jornalista, escritor, ensaísta, fazedor, intelectual, tradutor e comunicador”.
Nunca ninguém foi tanto ao mesmo tempo.
Quando abria a boca apaixonávamo-nos pela hipótese de um sonho, de uma ideia, de uma possibilidade de futuro maior.
3.
O que te posso acrescentar mais sobre este homem?
Que fez as pazes com o pai no decorrer de uma depressão que lhe durou uns meses depois de ter feito 40 anos.
O pai que lhe ensinou o amor pelo Benfica e chamava “talassas” aos monárquicos e “padralhada” ao clero, deixou-se morrer e desamparou-o;
ele que andava de mão dada com Arnaldo de Matos foi obrigado a começar a trabalhar para sobreviver e pagar os estudos.
Jurou que nunca iria ser como o pai, que jamais desistiria de viver antes de tempo.
E cumpriu a promessa.
António Mega Ferreira morreu depois de mais de vinte anos a resistir a um cancro que assumiu várias formas ao longo do tempo.
4.
António foi o homem da Expo.
Sem ele nada daquilo teria acontecido.
Não teria acontecido daquela maneira.
Portugal era um país provinciano, punha amarras aos que tinham grandes objetivos, parecíamos ainda condenados a respeitar a máxima “pobrezinhos, mas honrados”, de Salazar.
Só que o Mega era o Mega.
Não havia impossíveis.
Gostava de fumar charuto, de comprar coisas bonitas, de ver o bom e o melhor, mas desejava que todos os portugueses o pudessem fazer também, se o quisessem.
Que tivessem acesso ao melhor.
Foi nisso que pensou quando acendeu um charuto na inauguração da Expo – sabia que seria criticado, mas era-lhe indiferente.
Não resistia a uma boa provocação, da mesma maneira que não resistia aos pratos mais sofisticados ou a uns bons peixinhos da horta.
Que me dizia que a vida não era mais do que uma educação para a alegria.
Que me confessava que nunca lera “Em Busca do Tempo Perdido”, de Proust.
“Cai-me das mãos e arrisco-me a morrer sem o ter lido”, dizia com um sorriso incrédulo.
Não sei se o leu, se ainda foi a tempo.
Ou se foi a tempo de ver a beleza do jogo de Enzo Fernandes no seu Benfica onde tinha lugar cativo no Estádio da Luz, julgo que no setor 58.
Que não tinha medo da morte, embora tivesse medo de morrer sozinho em casa – espero que tudo tenha corrido bem, que tenha partido acompanhado e com a luz da mesa de cabeceira acesa.
Espero que tenha ouvido a voz de Callas – talvez o “Casta Diva”.
Ou uma canção italiana que o tenha feito recordar ou que o tenha encaminhado para as ruas de Roma ou Florença que tanto venerava.
Ou a voz híbrida de Antony que apreciava pela grandiosidade e uma certa decadência.
A sua vida, afinal.
Um paradoxo.
Uma maravilha.
LO
(da página do Facebook de Luís Osório).
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