ANTÓNIO BULCÃO OS MACACOS DA MINHA VIDA

Os macacos da minha vida
“Macacos me mordam”. Foi o que meu avô disse e eu ouvi.
Estava sentado na sua cadeira ao canto da sala, a ler “O Telégrafo”, jornal matutino do Faial. Fiquei a olhar para ele, sem entender. Era miúdo, mas já sabia que não havia macacos na ilha. O único macaco que tinha visto era de barro e estava na Foto Jovial, sendo um dos cenários possíveis para tirar retratos junto a quem nunca tivesse ido a partes do mundo onde houvesse tais bichos parecidos connosco.
O que haveria no jornal que levasse meu avô a desejar levar dentadas de macacos, coisa que não deveria ser agradável? Ouvia os grandes falarem que naquele papel vinha escrito, para além de notícias de coisas acontecidas há dias e artigos de opinião, anúncios de quem nascia, quem morria, quem casava, quem chegava para passar férias vindo do continente e até quem ia da cidade para o Capelo também de férias… Assim sendo, que tragédia poderia estar ali expressa em letras, que levasse meu avô a ter tão doloroso desejo? Doloroso e caro, pois certamente teria de apanhar o Funchal para ir à procura de macacos que o mordessem?
Com a casa cheia de primos, não de passagem mas vivendo tudo junto, apareceram novos macacos, estes tirados do nariz. Por quê macacos, outra vez, aquelas secreções que arredondavam entre dedos antes de voarem para o chão ou contra a cara de um primo mais novo e impertinente? Seria por alguns se agarrarem nas narinas, como os verdadeiros fariam nos ramos das árvores, convocando caretas e dedos quase zaragatoas para os desalojar? Correria grandes riscos por adormecer a ler banda desenhada, se o sono me pousasse a penca sobre a Chita do Tarzan?
Ainda longe da idade de saber que havia metáforas, maior susto foi quando, altas horas da noite, vinha com meu pai de Castelo Branco, a freguesia onde nascera e jogava sueca com o meu outro avô, um tio-avô e um tio direito. O carro desatou a cambar, meu pai saiu e anunciou, muito chateado, que tinha de tirar o macaco do porta-bagagens. Hello, agora o animal andava perto… Quando o vi, alongando as pernas de aço à força de manivela, não se parecia nada com a Chita e também não tinha aspecto de ter capacidade para morder meu avô.
Um dia cismei que havia fantasmas em casa. Umas pancadas secas vindas da sala esfriavam-me os suores e não me deixavam dormir. Seria o único a ouvir? Então, se assim era, era meu dever zelar pelo património comum. Acordei a família toda, para se descobrir que afinal era uma persiana a bater com a brisa que entrava pela greta de uma janela. Aborrecidos, voltaram todos ao leito, mas não me livrei de ouvir que “tinha macacos no sótão”.
Já grandinho, aprendi que cada macaco no seu galho, quando tentei opinar sobre uma dor com um amigo médico e algumas mulheres enfurecidas mandaram-me pentear macacos.
Hoje, já por algumas vezes me chamaram macaco velho. Sei ser um elogio, mas continuo sem entender. Nunca mordi ninguém, prefiro outras partes do corpo que não o nariz do ser humano (género feminino) para me alojar, não ajudo a içar carros necessitados de pneus suplentes, no sótão tenho árvores de natal e luzes em espera para dezembro, mantenho-me cada vez mais no meu galho e pentes desapareceram-me da casa de banho desde que se tornaram inúteis…
Ah, e desde os 15 anos que sei como é um macaco, quando os meus tios me levaram ao zoológico de Lisboa. Por isso sei bem distingui-los dos macacos (velhos e novos) com que me cruzo por aí…
António Bulcão
(publicada hoje no Diário Insular)
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