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Ana Franco
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Carta a Lorenzo
Não tinhas o direito, Lorenzo. Se ninguém to disse até hoje, digo-to eu.
A baía de Porto Pim é das coisas mais bonitas que temos nos Açores. Não tinhas o direito de entrar por ela dentro com fúria desmedida, fosse mascarado de tempestade tropical, ciclone ou furacão. Ainda mais sem ser convidado.
Vou-te contar umas coisas daquele lugar, para teres consciência do mal que fizeste.
Na maré baixa, a gente anda por aí fora sempre com pé, a água abaixo do joelho. Quem se conseguir afogar lá, merece uma medalha. É de tal maneira que um homem fica com a sensação de que, se continuasse em frente, chegaria às Flores, quando muito com água pela barriga.
Nunca fui grande nadador. Mas no Porto Pim, não tenho medo. Lembro-me de quando a fábrica da baleia estava a laborar. Os cachalotes a serem puxados pela rampa e a ficarem esquartejados. Ai sangueira que descia pela rampa, tingindo o mar de vermelho, ainda Tabucchi não imaginava mulheres por ali.
Os drones não tinham sido inventados. Mas se houvesse um por aqueles céus a voar, no decurso de Verne, conseguiria filmar a minha brancura, a nadar de costas, na linha entre um mar vermelho e outro azul. Uma espécie de bandeira de país por inventar…
Nas areias de Porto Pim joguei à cabeçada até o ardor na testa ser insuportável, quatro montinhos a fazer de balizas. Naquelas areias enrolei corpos de mulher, como se fossem rissóis à espera de piquenique crepuscular.
E apanhei saltão. Não fazes ideia do que é saltão, Lorenzo. Mas eu ensino-te.
Se cavares onde acaba a areia molhada e começa a areia seca, o bicharoco começa a saltar e aprendes logo por que se chama assim. Quanto mais fundo se cava, maiores são. Balde com eles e toca para o Redondo da Doca, quando nos deixavam ir pescar para lá.
O besugo adora saltão, Lorenzo. Deve enfiar-se no anzol pelo rabo, para os cornos ficarem a dar e dar na barba, com ar de desafio. Mas tu queres saber lá disto, deves ter dado cabo do saltão todo…
Conheço aquele areal grão por grão, Lorenzo. Mas a baía não é só a praia.
Na base do Monte da Guia, apanhei carapau que, todo junto, daria para alimentar a ilha um ano. Até me lembro do dia em que levei minha mãe, que adorava pescar, e estava perto um grupo de uns dez alemães, homens e mulheres, todos nus. E minha mãe olho na ponta do caniço, olho nos pirilaus, até que ganhou coragem para me perguntar: “Ó Tomanel, é impressão minha ou aquela gente está toda em coiro?”. Respondi que tínhamos de passar no Nogueira, o mais parecido que havia com um oftalmologista na ilha, para acertar as dioptrias das lentes antes que piorasse…
Mas do outro lado da baía também pesquei sargos. Eu e o Mário, que era dos poucos lugares onde ele podia pescar, na sua cadeira de rodas, com uma maleita que lhe levava os músculos aos poucos, só deixando os ossos e o cérebro brilhante, com o qual contava as cartas todas no Artista, melhor jogador de king nunca vi…
Não tens consciência do que fizeste, Lorenzo? Empurraste o mar até ele entrar por aquelas casas dentro, destruíste salas e quartos, deixaste água salgada dentro dos lustres pendurados nos tectos, caldeaste as fotografias da primeira comunhão com as do casamento nas paredes…
Desalojaste velhos, mães com filhos bebés, fizeste de ruas ribeiras. Não se faz, Lorenzo…
Da próxima vez vem calminho e olha bem à tua volta. Vê o Pico entre o Monte da Guia e o Monte Queimado, olha o sol a nascer atrás da montanha e a pôr-se do lado de cá, para além da Caldeira. Tenho quase a certeza de que te dissiparás perante tanta beleza, que não quererás fazer mais mal em lado algum…
Já nos bastam alguns homens, que querem acabar com a minha ilha. Não precisamos de ti…
António Bulcão
(publicada hoje, no Diário Insular)
commented on a post from 8 October 2019.