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Máscara ou coroa
Um rosto é um rosto. Tem mais que olhos. Por muito que digam serem os olhos o espelho da alma, um rosto tem também nariz, e boca. Que são espelhos de muitas outras coisas.
Por alguma razão se inventou o “franzir” do nariz. E o “esgar” da boca. Por alguma razão dizemos sem falar que não gostamos daquele sabor ou que aquela pessoa nos mete nojo. Os olhos sozinhos não conseguem tanto…
Uma pessoa sem rosto perde a sua individualidade. Dizem que não há duas caras iguais. Por isso a cara toda é importante. Para vermos sorrisos. Um nariz torcido. Subtis mordidas de lábios. Uma ponta de língua a convidar.
Por alguma razão há pessoas que têm olhos bonitos mas não basta para que sejam bonitas. Por alguma razão há homens que dizem a mulheres “tens os olhos bonitos” em vez de “és muito bonita”. Se o nariz é curvo ou os lábios sem carne, restam os olhos para impedir a indelicadeza de “és feia como a morte”. Quando restam. Porque se for tudo feio, resta o silêncio.
Por alguma razão os cartões de cidadão têm a nossa fotografia de rosto inteiro, não apenas dos olhos. Mesmo sem conhecer até hoje uma única criatura que tenha ficado minimamente apresentável no cartão de cidadão, fica lá estampada “a cara que Deus lhe deu”, a de cada um. Não há a expressão “os olhos que Deus lhe deu”.
Não me imagino a viver numa cultura em que só veria o rosto inteiro da mulher escolhida ou que me escolhessem depois do casamento. Com a sorte que tenho, saía-me um estafermo de certeza. Eu a tirar o véu da antes noiva agora já esposa, com a mesma esperança com que confiro os números do euromilhões e a dizer para dentro, “pois, tinha de ser…”, antes de apagar a luz.
Gente a passar por mim e a cumprimentar. E eu a retribuir, sem fazer a mínima ideia de quem é. Os mais afoitos a levantar a ponta da máscara, assim como quem diz “não te safas de saber quem sou”. E eu “ah, és tu…”.
Já não há a expressão “estás com cara de caso”. Impossível ver um caso só pelos olhos, para se inventar o dito “estás com olhos de caso”. “Estás com má cara” foi igualmente à vida. Ninguém vai dizer que “estás com má máscara”, a não ser àqueles que a usam só a tapar a boca, ou o queixo, há malta que julga que o corona ataca queixos.
“Tá na cara que é aldrabão” desapareceu. “Tá na máscara que é sonsa” não me parece alternativa.
Os meus alunos e alunas de máscara. Sentados longe de mim. Tristes. Só olhos.
Entram na sala, desinfectam as suas carteiras e sentam-se, como quem espera a pior sentença. Sorrisos apenas pressentidos, risos de pano ou cirúrgicos, entalados, estrangulados.
Os do 11º ano já os conhecia do ano passado. Sei como são. Os do 10º não faço a mínima ideia. Se são tímidos ou marotos. Sonsos ou gozões. Límpidos como aquários ou venenosos como escorpiões. Vamos ver na lista. Na lista estão os nomes e as fotografias. Mas as fotografias ou são antigas, ou são como as do cartão de cidadão, só que às cores…
Claro que são precisas, as máscaras. Com elas está desta maneira, sem elas já tínhamos marchado todos. Mas está a ser tão difícil não ver rostos inteiros.
Se nos tiram a individualidade, tiram-nos a liberdade. Mesmo que seja para nosso bem. Somos cada vez mais todos iguais. Presos atrás de panos, sejam de várias cores, sejam do azul-bebé da farmácia.
Um último pedido: enterrem-me com máscara. Não quero que nenhum verme me reconheça.
António Bulcão
(publicada hoje no Diário Insular)