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Coisas de rapazins
Em janeiro de 2016 publiquei, nestas mesmas páginas, a carta que abaixo transcrevo, dirigida a quatro deputados do PS na ALRAA. Já eram deputados antes, foram de novo eleitos nesse mesmo ano de 2016 e são outra vez candidatos nas próximas eleições deste ano. Queriam os rapazes combater a abstenção. Deixo-vos a carta na íntegra, para que possam os leitores avaliar da sua plena actualidade.
Carta a 4 deputados do PS
Exmos Senhores: Francisco Coelho, José San-Bento, Berto Messias e Francisco César:
Li na imprensa que estais a preparar uma moção política, a apresentar no próximo Congresso do PS, para analisar e combater a abstenção que se tem vindo a verificar nos actos eleitorais, aqui nos Açores. Chamar-se-á, a acreditar nas notícias, “Mais participação, mais democracia” e vai propor “medidas inovadoras”, no sentido de “sensibilizar os cidadãos, para uma maior participação política e eleitoral”.
Como podereis imaginar, emocionastes-me de forma profunda. Primeiro, como conseguistes descobrir que o Povo cada vez menos se interessa pela política e, consequentemente, menos vota? Ninguém tinha dado por isso. Mas vós destes. Louvo o facto de estardes há tantos anos na Assembleia. Só nesse retiro espiritual serão possíveis tais “visões”. Tendes tempo e paz de espírito para descortinar o que a nós, simples trabalhadores, passa completamente ao lado. Não há dinheiro que pague o que fazeis por nós. Por mim, ficaríeis lá até ao fim dos vossos dias, mesmo que ninguém votasse. Qual Newton? Qual Arquimedes? Que Einstein? Esta vossa descoberta suplanta tudo o que a Humanidade tem vindo a produzir ao longo de séculos.
Claro que haverá almas mal-intencionadas. Criaturas invejosas, a dizer que era evidente a abstenção ser grande e ter vindo a crescer. Tristes. Se rodeassem Colombo, no dia em que ele pôs o ovo de pé, seriam os primeiros a dizer “grande coisa…”. Mas ficaram calados até hoje. Para todos os efeitos, não sabiam. Registai, por isso, a patente: sois vós quem viu primeiro. E, só por isso, mereceis fazer parte das próximas listas de candidatos. Não deixem que ninguém vos roube o lugar. Não permitam que, seja quem for, queira apagar os iluminados que sois e devereis permanecer. Preparem-se para os ataques.
Haverá quem diga que já há muitos anos que a abstenção tem vindo a crescer sem que vós, dispondo de ampla maioria há vinte anos, se tenham interessado minimamente por tal. Outros dirão que é por ser ano de eleições. Que quereis mostrar serviço. Ser notados. Assegurar lugar elegível nas listas. Virão ainda os que dirão ser inútil o vosso esforço, a vossa moção. Que não podereis fazer nada para inverter a situação. Não lhes liguem. Todos os visionários tiveram de pagar um preço. É a História que o assegura. Ide em frente. Que nada vos detenha. Porque, no fim do vosso esforço, quando nem um cidadão ficar em casa em dia de eleições, só aí vos darão valor. Quando as filas de sedentos votantes atingirem o cume mais alto de cada ilha, descendo depois lenta e pacientemente para depositar a sua cruz na urna da sua residência, quererão certamente os vossos detractores actuais erguer-vos estátuas.
A situação é, realmente, muito grave. Nas últimas eleições regionais (2012), em que conquistastes maioria absoluta (mais uma), em 225.000 recenseados, apenas votaram cerca de 107.000. Taxa de abstenção de quase 53%. Em dez açorianos, apenas quatro se dignaram votar. Sendo que fostes eleitos por mais de metade, isso cifra-se em pouco mais de 50.000 votantes, menos gente do que apenas vive na ilha Terceira. E foi um recorde. Nas penúltimas presidenciais já foram sete em dez os açorianos a ficarem em casa, e nas últimas europeias o número subiu para oito em dez. Suplantamos a abstenção a nível nacional. Também nessa tristeza somos campeões. Não nos bastavam as outras, o desemprego maior, a dependência do rendimento mínimo mais brava, a taxa de alcoolismo mais alta, o número de gravidezes precoces mais assanhado…
Gostava, no entanto, de vos propor um pequeno exercício: começai a investigação das causas pelo vosso próprio partido. Nas últimas directas, o Presidente regional do PS foi eleito com cerca de 30% dos votos. Sete em cada dez militantes nem se deram ao trabalho de ir votar. Antes de tentardes saber o que se passa na rua, tratai de arrumar a vossa casa.
Aqui fica o meu humilde contributo para a compreensão do problema. Possivelmente esbarrará esta ousadia nas vossas doutas certezas. Mas, mesmo assim, aqui fica.
As pessoas deixam de votar quando acham que não vale a pena fazê-lo. Ou porque os projectos políticos que lhes são apresentados são maus, ou porque os protagonistas não têm qualidade, ou porque já está tudo resolvido e o seu voto não conta para nada. Não vale a pena… É mais do mesmo. Sei que não sois dados a estas coisas da cultura (pelo menos não vos vejo em nenhuma manifestação cultural). Mas imaginem o mesmo concerto vezes sem conta, em que são tocadas as mesmas músicas, sempre pelos mesmos executantes. Deixa de valer a pena ir lá passado pouco tempo… O ser humano tem destas imperfeições…
O PS já foi, há muitos anos, mais de vinte e um, um espaço de discussão, de controvérsia, de participação, como devem ser os partidos políticos. Houve diversos contendores para certos órgãos, programas diferentes, soluções diversas. Mas apenas enquanto foi oposição. Depois de aceder ao poder, tudo isso desapareceu. Vergado à vontade um só homem (por acaso o pai de um de vós), entrou quem ele quis, saiu quem ele quis, fez-se sempre como ele quis. Situação que ainda permanece. Para quê ir votar, então, se tudo está decidido? Não vale a pena, pensam sete em cada dez militantes.
Enquanto maioria parlamentar e governo, as coisas passaram-se também assim. Um homem determinou, o governo avançou, a maioria aprovou. O resto resume-se a discussões estéreis, a ataques à oposição inútil, a debates exaltados mas sem sumo e muito menos resultado. Não vale a pena participar nesta palhaçada, pensam assim seis em cada dez açorianos.
E tendes, ilustres representantes de quase ninguém, neste triste quadro, a distinta lata de vir falar em mais participação e mais democracia? Onde? No partido que morreu ou na Região onde mandais, tendo criado condições para mandar eternamente, mesmo que só vós e respectivas famílias votem?
Mas, se risível é falardes em democracia, de gargalhada franca é irdes propor “medidas inovadoras” para combater a abstenção. Que tendes em mente? Ireis também propor um sorteio de carros de luxo para os abstencionistas que passem a votar? Ou dez lugares (igualmente à sorte) nas empresas públicas que criastes e dominais? Chupa-chupas à boca das urnas para novos votantes?
A música (pobre) continua a mesma, meus caros. Com os mesmos (fracos) executantes. Medidas inovadoras seriam irdes para casa e mudar a partitura. Mas já se viu, pela moçãozinha, que pretendeis continuar, e a tocar mal as vossas partes da sinfonia. Ansiamos pela divulgação das listas de candidatos nas diferentes ilhas, para analisarmos a vossa “inovação”.
Post Scriptum (a abreviatura poderia prestar-se a confusões): não espero que nenhum de vós responda a esta carta. Sei que, na vossa cabeça, este cão ladra e a vossa caravana passa. Por falta de capacidade, de coragem, ou por ordens vindas de cima, ninguém do PS me deve responder. Acato o vosso silêncio com o respeito que me aconselha o Povo: quem cala, consente. Mas, se por milagre farmacêutico quanto à capacidade, maior milagre de ginásio no que respeita à coragem, ou desobediência às ordens da cúpula, algum de vós ou (milagre supremo) os quatro de cacho, decidirem responder-me, ficais a saber que exijo, como preâmbulo, a informação pública sobre: a) Se não fordes candidatos à ALRAA este ano, para onde ireis? b) Ganhar o quê? A resposta a estas duas questões será essencial para que vos preste alguma atenção futura. Porque, se for para continuardes na Assembleia, a ganhar mais do que ganharíeis nos vossos empregos (os que os têm, evidentemente), a vossa resposta será tão inútil quanto a vossa moção. E não haverá medida inovadora que vos valha…
Post Scriptum 2 – Nas eleições de 2016, a abstenção subiu. Tudo leva a crer que o mesmo cenário se repita em outubro deste ano. Portanto, nada mudou. Nenhuma medida foi tomada para diminuir esse flagelo. E os rapazins que andam a brincar connosco vão lá continuar sabe-se lá por mais quantos anos, sem fazerem nada para mudar a triste realidade em que vivemos. Porque lhes dá jeito que os cadernos eleitorais se mantenham desactualizados e que não haja alterações à Lei Eleitoral, que permitissem a participação política dos cidadãos para além dos partidos políticos. Por quanto mais tempo os homens destas ilhas vão aturar os rapazes que vêem na política uma carreira profissional?
António Bulcão