ANTERO por MARIA JOÃO RUIVO

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“Antero de Quental – esboço de uma abordagem para os alunos de hoje”
[Intervenção no Colóquio sobre Património (dia da Escola -21 de fevereiro, 2019)]

Falar de Antero exige de nós um enorme respeito e uma profunda reflexão. Mas em 10 minutos a reflexão profunda é impossível, restando-me, por isso, o respeito que lhe é devido.
O que venho aqui dar hoje é um pequeno contributo. Trata-se de uma breve reflexão sobre uma possível abordagem de Antero para os alunos de hoje

Durante os últimos (vários) anos, Antero de Quental deixou de estar presente nos programas de Português do Ensino Secundário, sendo estudado apenas pelos alunos de Humanidades, na opção de Literatura Portuguesa, o que pressupõe que a maior parte deles passou pela escola sem ouvir falar do Poeta. Com a última reformulação dos programas, Antero voltou, há dois anos, a ser inserido na disciplina de Português do 11º Ano.
Sendo assim, pensei que teria algum interesse, como professora, fazer uma breve reflexão sobre uma possível forma de abordar Antero de Quental junto dos alunos deste nosso tempo. Todos entenderemos que é um grande desafio levar adolescentes de 16/17 anos, que pouco ou nada lêem, a entenderem a poesia de Antero, com a complexidade que a caracteriza.
Atendendo ao tempo de que disponho, optei por dois aspetos, que, entre muitos outros, considero dignos de reflexão. Por um lado, mostrar Antero aos alunos na grandeza e na força da sua busca incessante e, por outro, levá-los a ver a morte do Poeta como uma entrega ao Absoluto que ele tanto procurou, numa tentativa de apaziguamento e de reconciliação com a vida.
Começarei por fazer uma breve contextualização junto dos alunos para que eles entendam que a obra de um escritor, de um poeta, não surge desligada da sua vida e do seu tempo. Falaremos, inevitavelmente, da saída da ilha. Antero era quase uma criança, quando se afastou de São Miguel e da família. O desabrochar deu-se em Coimbra. Na sua irreverência juvenil, ele procurou tudo o que fosse novidade, numa tentativa de quebrar as amarras da tradição, e, embora nas crises de pessimismo o seu tempo o desgostasse, ele pareceu também acreditar, noutras alturas da sua vida, que havia esperança para o homem e que este caminharia num sentido positivo, procurando o Bem, a Justiça e a Verdade, assim, com maiúsculas.
O nosso Poeta-filósofo encarna, no fundo, as eternas angústias dos homens. Angústias que os jovens de hoje também sentirão, de alguma forma, ainda que não as estruturem em pensamento, como ele fazia; ainda que não consigam verbalizá-las. Tal como acontece com eles, Antero viveu uma época de profundas transformações, porém, e aí ele distingue-se da maioria, passou a vida inteira a tentar interpretá-las. Seria muito interessante levar os jovens a entender até que ponto terá sido um deslumbramento, e, ao mesmo tempo, uma imensa angústia, Antero, quase criança ainda, sair do ambiente fechado e opressor da ilha de São Miguel do séc. XIX e embrenhar-se no núcleo coimbrão que começava a tomar contato, através da leitura, com as profundas revoluções que se operavam no centro da Europa. Entenderem a luta que encetou e a influência que exerceu na sua geração. Seria importante que os jovens de hoje – que estão conetados (como é moda dizer-se) com todo o mundo e para quem as mudanças já aparecem feitas sem lhes darem sequer tempo ou instrumentos para refletirem sobre elas – entendessem em que medida é que este processo foi complexo e, ao mesmo tempo, fascinante, para a geração do nosso Poeta.
Isto poderá levar-nos à relevante questão da personalidade atormentada de Antero. Ao longo da sua vida, ele é dominado por apelos que se opõem e que determinam, em boa parte, o seu percurso. Há nele, todos sabemos, um Antero “Apolíneo”, “diurno” e um “Antero noturno”, como o definiu António Sérgio. O primeiro exalta a Luz, a Razão e o Amor e evidencia a clarividência do espírito combativo, a avidez de reformas estruturais que coloquem um termo aos problemas sociais; enquanto o segundo é marcado pelo Pessimismo, pelas angústias existenciais, pelos hinos à Noite e à Morte, esse descanso final. A verdade é que ele teve consciência do declínio e da crise profunda que o seu tempo atravessava e, ao mesmo tempo, tentou ser a voz da Revolução intelectual e moral que se deu dentro dele e que se operava, também, nas capitais europeias.
Não há dúvida de que Antero toda a vida buscou algo que o ultrapassasse, e o mais próximo que lá esteve terá sido pelas incursões que fez no mundo das ideias. Acho que essa é uma questão que se pode tornar muito pertinente. Cada vez mais, os nossos jovens estão esvaziados. Buscam, em cada dia, o material e o imediato, sobretudo na forma de tecnologia. O esforço que se lhes exige é mínimo. “Tudo está à distância de um Click”, como tanto se publicita. Ora, defender um ideal dá trabalho, exige abdicação, implica riscos. Que pena eles não imaginarem que isso daria um sentido absolutamente valioso à sua existência!
Para Antero, a vida foi uma busca – a busca da Ideia, o Bem supremo, como diz nestes versos (e cito): A Idéia, o sumo Bem, o Verbo, a Essência,/ Só se revela aos homens e às nações/ No céu incorruptível da Consciência!
De qualquer modo, todos sabemos que cedo se abateram sobre o poeta estados de tristeza e pessimismo, a que vieram juntar-se os primeiros sintomas da doença que havia de atormentá-lo até ao fim da vida. Esta questão não será demasiado explorada junto dos alunos, até porque o programa é extenso e o tempo que temos para dedicar a Antero é muito curto, mas é inevitável que dela se fale um pouco.
Sendo Antero um homem perseguido pela angústia, pela doença e por essa busca constante que o atormentou, é natural que a ideia da Morte tenha ocupado um lugar importante na sua filosofia. Para ele, o homem, ser imperfeito, no seu percurso evolutivo, passa da realidade material da sua existência temporária e limitada para um outro estado que o aproxima do Absoluto. A Morte é essa passagem.
Mas a verdade é que nem tudo é pessimismo em Antero. Ao lermos os seus sonetos, por exemplo, percebemos que, se muitos revelam as angústias e os estados depressivos, também há outros que confirmam a sua faceta lutadora e o apaziguamento, comprovando, mais uma vez, que este é um poeta caracterizado por uma série de contradições, sinal da sua profunda humanidade.
É ele próprio que escreve ao seu amigo Francisco Machado de Faria e Maia, dizendo: “Estou resolvido a publicar a série completa dos meus sonetos, na sua ordem cronológica, de modo a formarem uma espécie de autobiografia, ou Memórias morais e psicológicas. Provavelmente, é tudo quanto ficará de mim”.
Antero abre a sua seleção de sonetos com “Ignoto Deo” e termina-a com “Na Mão de Deus”, parecendo, assim, querer demonstrar que se fechou um ciclo de busca, dúvidas e ansiedade. Ao lermos os poemas, percebemos, neles, uma parte do seu percurso filosófico (que veríamos muito mais aprofundado na prosa, como é natural). Entendemos as angústias e o pessimismo, mas também uma certa reconciliação. Apresentarei aos meus alunos ambos os polos, evidentemente, e eles refletirão sobre eles, com a minha ajuda.
Gostaria que eles percebessem que, na profunda construção do seu pensamento, o Poeta, apercebendo-se da finitude e da imperfeição do homem, procura caminhar no sentido evolutivo, tentando libertar-se da matéria, em direção ao espírito, de certa forma contemplando esse percurso, lá do alto onde se encontra, como vemos em:

“Contemplação”
Sonho de olhos abertos, caminhando
Não entre as formas já e as aparências,
Mas vendo a face imóvel das essências,
Entre ideias e espíritos pairando…

E a verdade é que, nessa caminhada que foi a sua vida, (sei que a metáfora não é original, mas por agora serve-me muito bem), apesar das angústias, do pessimismo e das dores profundas, não é subjetivo de todo dizer-se que houve lampejos de Esperança e de apaziguamento.

“Solemnia Verba”

Porém o coração, feito valente
Na escola da tortura repetida,
E no uso do penar tornado crente,

Respondeu: Desta altura vejo o Amor!
Viver não foi em vão, se é isto a vida,
Nem foi demais o desengano e a dor.

Termino esta brevíssima viagem pelos sonetos com os conhecidos versos de “Na Mão de Deus”: Dorme o teu sono, coração liberto, / Dorme na mão de Deus eternamente! Mas juntar-lhes-ia o último terceto de “Nirvana” (*), porque acho que ilustra muito bem essa ideia de apaziguamento e de Esperança, que aqui defendo:
Chegar onde eu cheguei, subir à altura
Onde agora me encontro – é ter chegado
Aos extremos da Paz e da Ventura!

Pode parecer tendenciosa a minha escolha destas passagens dos sonetos anterianos. E é-o, em certa medida. Mas defendo-me, dizendo que não estou, aqui, a desenvolver uma tese. O assunto da minha intervenção, que aqui recordo, é uma proposta de abordagem de Antero junto dos meus jovens alunos. Claro que não a limitarei a esta visão parcial. Nem eles poderiam chegar aqui, se não se falasse das inúmeras contradições e do tormento que marcam o caráter e a obra deste poeta.Toda a sua vida foi uma indagação. Perseguido pelas dúvidas, pelas angústias, pela doença e pelo pessimismo, Antero buscou, inevitavelmente, o descanso, nesse seu gesto extremo da morte procurada. Mas o que pretendo, no fundo, é que os alunos tomem contato com o perfil de Antero, com o percurso que fez, com um pouco da muita obra que deixou e com aquilo por que se debateu e que poderá servir de exemplo ainda hoje. Gostaria muito que eles chegassem ao fim da unidade sobre o poeta capazes de refletirem um pouco sobre a ideia de que a luta pelo Bem, pela Justiça e por uma Liberdade bem entendida é intemporal. Que Antero teceu essa luta recorrendo ao Pensamento e à força da Palavra poética. E que, apesar dos momentos de desânimo, terá, talvez, encontrado uma Paz que tanto procurou.
Finalizo, dizendo que há muito que penso não ter sido por acaso que Antero escolheu pôr fim à vida num local tão público como o Campo de São Francisco, precisamente junto ao Convento da ESPERANÇA, na sua cidade natal, e no banco que se situava por debaixo da âncora que ainda lá se encontra. Há uma mensagem, julgo eu, que ele nos quererá transmitir com esta escolha da morte e do lugar onde ela se deu. Ele aproximava o conceito de morte à ideia do “não-ser”, uma forma de união com o transcendente – Deus – não necessariamente nos preceitos tradicionais que a sua educação religiosa, pela mãe, lhe ditara, mas numa conceção muito mais filosófica que ele terá elaborado e repensado a vida inteira. É como Eduíno de Jesus diz, de alguma forma, que (e cito) “ O Poeta (…), um dia, já cansado de tanta luta, [perdeu-se] de propósito, por fim, nessa mesma praia infinita do Não-Ser = Ser Único Absoluto.” E é como o próprio Antero diz, num soneto que dedica à Noite:

Oh! antes tu também adormecesses
Por uma vez, e eterna, inalterável,
Caindo sobre o mundo, te esquecesses,

E ele, o mundo, sem mais lutar nem ver,
Dormisse no teu seio inviolável,
Noite sem termo, noite do Não-ser!

Maria João Ruivo
In Antero 125 anos depois (versão adaptada)