ALZIRA SILVA, OS VELHOS E UMA PALAVRA

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Palavras
Sei que as palavras voam com a rapidez do tempo em transformação. Mas há palavras que perduram. E silêncios. E gestos. E sorrisos. E ausências.
Se volto hoje, é porque a necessidade de partilha se sobrepôs à da ausência. E a palavra placentária precisa rasgar alguns silêncios. O meu silêncio. O silêncio de um amigo nonagenário. O silêncio de outros amigos. O silêncio de muitos conhecidos. Talvez o silêncio de tantos desconhecidos…
Vem a palavra a propósito de uma visita a um amigo nonagenário. Que quase não recebe visitas. “Para proteção dos nossos idosos”. É um lugar-comum estafado, sobretudo desde que a pandemia se impôs. Uma frase feita a que não corresponde a ação. As atitudes desmentem essa alegada proteção. Os velhos – e não vou cair no politicamente correto de lhes chamar idosos –, na cultura do nosso país, têm vindo a ganhar peso e a perder respeito social: peso pelo número da população acima dos 65 anos; respeito pela desconsideração geral de uma sociedade que fala por eles sem os escutar. E que se atreve a dizer, por pensar que lhe fica bem o pouco convincente paternalismo: “os nossos idosos”.
Os velhos não se sentem de ninguém. Pela primeira vez nas suas vidas – pelo menos alguns meus conhecidos – estão livres do sentido de pertença. Para o bem e para o mal. Esta liberdade tem um custo: chama-se solidão. Os novos arremessam a justificação da crise, da sua atividade e do tempo que não estica para se autodispensarem de lhes prestar cuidados ou de lutar por eles. Os velhos fingem aceitar essas razões esfarrapadas pelo uso e pelo abuso da sua invocação.
Estive à conversa com o meu amigo nonagenário. A sua mente um pouco alheada da realidade ainda luta pela justiça, pela igualdade de direitos, pela dignidade, pela defesa de valores da humanidade que devem ser de todos nós. Estava preocupado por não ter acesso aos meios adequados para divulgar algo importante na sua escala de valores. Fechado no quarto do seu confinamento – a sua vida, afinal –, confiou-me essa tarefa. E eu aqui estou. Não para procurar a pretendida justiça e a merecida solidariedade mas para lhe dar a voz que já não é escutada. Para lembrar o apelo do pacto geracional lançado pelo cardeal poeta Tolentino de Mendonça, no dia de Portugal, de Camões e das Comunidades: “O pior que nos poderia acontecer seria arrumarmos a sociedade em faixas etárias, resignando-nos a uma visão desagregada e desigual, como se não fossemos a cada momento um todo inseparável. (…) Precisamos, por isso, de uma visão mais inclusiva do contributo das diversas gerações. É um erro pensar ou representar uma geração como um peso, pois não poderíamos viver uns sem os outros.”
No itinerário de uma vida – e agora parafraseando em adaptação, de novo Tolentino de Mendonça – há “maturações, deslocações, rupturas e recomeços. O importante a salvaguardar é que, como comunidade, nos encontremos unidos em torno à atualização dos valores humanos essenciais e capazes de lutar por eles.”
Então – e voltando atrás – vim aqui porque o meu amigo nonagenário queria lutar por eles e não sabia como ter acesso a uma palavra que fosse ouvida. Vim também para honrar a palavra dada. Vim ainda porque me sinto capaz de lutar por eles. E vim lembrar que os velhos vivem hoje. Neste hoje em que todos estamos. Apoquentados com o futuro, esquecidos de que o hoje é vida. E que, mesmo quando a vida já é um olhar ausente, há ainda uma voz que procura a palavra. Uma mão que procura outra para lhe agradecer o sorriso, a companhia. Sem paternalismos fictícios. Sem credo nem idade nem escala social. De ser humano para ser humano. Apenas.