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Ajustes directos.
Há muitos anos cheguei a Amesterdão para trabalhar, era recém doutorada, tinha 31 anos. Era Setembro, frio e pouca luz, a luz nórdica, branca. A secretária do Instituto perguntou-me quantas viagens eu ia fazer até Junho – estávamos em Setembro. Disse-lhe que várias, todos os meses, até Junho, pelo que…ela interrompeu-me, com delicadeza, sim, queremos comprar já todas. Fui para o meu gabinete, entreguei-lhe as datas, passado 30 minutos tinha todos os voos até Junho no meu email. Quase chorei de emoção. Em Portugal teria que escrever um relatório, um formulário, ia para uma central de compras em nome da “transparência”, vinha de lá mais cara do que na net, guardar o boarding pass para provar que não tinha ido para as Caraíbas. O que fazer? Apaixonei-me pelos operários da Lisnave de 1974, se não tinha ficado por lá. Mesmo sem a nossa luz. Aqui, os cientistas só ficam por paixão, não raras vezes colegas meus no estrangeiros me perguntam “porque estou a trabalhar em Portugal?”, como se fosse um dado adquirido que isto não tem futuro. Pouco tempo depois, nesse ano, fiz um parecer de tese para a Austrália, que não é cá pago, passemos essa parte à frente. Entreguei o parecer, passados dois dias tinha na conta o valor, aqui tinha preenchido meia dúzia de formulários, assinaturas, e não tinha recebido nada, mas gasto tanto tempo em formulários como a ler a tese. Um tipo entra no PS, vende umas máscaras, em plena pandemia (como aceitar isto?), e ganha uns milhões, tudo directo e ajustado, simples, simplex. Sim, os que cá ficámos é por pura paixão. Sempre que penso em sair lembro-me dos operários da Lisnave a desobedecer aos fuzileiros, até vou ler – juro – de novo o relato dos fuzileiros a chorar, ao lado deles, com eles, e seguirem, o operários, desobedientes, em manifestação até à Praça de Londres. E volto a acreditar que isto um dia ainda vai ser um lugar decente para trabalhar e viver.