AINDA A BRONCA DO EXAME DE PORTUGUÊS

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Carlos Reis

Já muito foi escrito, em diferentes locais, sobre o Exame Final Nacional de Português, prova 639, 1ª fase. Daquilo que li, remeto para o excelente artigo de Elisa Costa Pinto, no Público, e limito-me a algumas questões acerca da parte do exame consagrada a Eça, denunciando nela várias coisas que me deixam perplexo, numa prova desta responsabilidade: ambiguidades, omissões e erros metodológicos.
1. Estão em confronto dois passos d’A ilustre Casa de Ramires e d’Os Maias. Tendo em atenção o que vem depois, a ordem não deveria ser a inversa? Afinal de contas, Os Maias foram escritos e publicados antes d’A ilustre Casa de Ramires. Esta questão não é meramente cronológica, envolve mudanças temáticas e formais. Não que os estudantes devam explicitá-las, obviamente, mas quem fez a prova deveria saber que a diacronia normalmente traz consigo aquelas mudanças. Ou seja: há um antes e um depois, com os seus significados.
2. A comparação incide sobre obras com trânsito diferente, no trajeto formativo dos alunos. Uma terá sido (terá…) lida integralmente, a outra não. Se é possível comparar dois textos nesta situação, então o raciocínio do aluno sagaz é este: não vale a pena ler integralmente as obras.
3. A comparação da atitude de Gonçalo Mendes Ramires com a de José Lúcio Castanheiro não me levanta problemas. O mesmo não digo da comparação com a “atitude das personagens do excerto d’Os Maias”. Quais, pergunto eu? Carlos da Maia e João da Ega? Os “rapazes, aos pares”? A “criatura adoentada”? As “donas de casa de hóspedes”? Todas elas? Lembro que o enunciado fala na “atitude das personagens” (todas) e não de certas personagens ou desta e daquela, especificamente.
4. Se a comparação é com “os rapazes aos pares” (e não com Carlos e Ega), então não entendo como se pode pôr lado a lado um protagonista (Gonçalo) e personagens com dimensão de figurantes anónimos.
5. Todo o primeiro passo é construído pela dominante visão omnisciente do narrador (poupo a quem me ler terminologia mais exigente), enquanto o segundo decorre do olhar sobranceiro e “estrangeirado” de Carlos da Maia. Como quem diz: comparamos o incomparável. E para que conste: Carlos não tem autoridade moral para acoimar de ociosos “aqueles moços tristes”…
6. A pergunta 2 diz: “Explicite um dos aspetos criticados em cada excerto”. Um dos aspetos de quê? Da visão crítica, suponho. Custava muito explicitar?
7. Quanto ao completamento das afirmações (em 3), dispenso-me de comentar o caráter obviamente simplista do procedimento da escolha – que arrasta novas ambiguidades.
8. Por exemplo: os três fragmentos destacados em a) aparecem entre aspas, mas um deles traz consigo as do texto. Será talvez um pormenor (um daqueles em que se esconde o diabo), mas a verdade é que, deste modo, o 3 (que é a resposta certa) parece uma citação de… discurso direto, como é o caso do 2. Claro, o aluno deve ir ao contexto, mas… será que vai? Não teria sido possível dizer isso?
9. Para a alínea c), a resposta indicada como correta é a 1, mas será isso inequívoco? Eça escreveu “negros óculos”, não escreveu “óculos negros” ou “óculos pretos”. “Negros óculos” não diz nada acerca da “reação da personagem”? Não seria antes de valorizar (e de questionar) e famosa hipálage queirosiana em “(…) óculos (…) duros e desconsolados”? Quem ali está desconsolado?
Fico-me por aqui (e nem falo das edições escolhidas para transcrever os dois excertos), porque me basta perguntar, com desconsolo semelhante ao do Castanheiro: esta prova traduzirá o estado a que chegou a disciplina de Português, neste nível de ensino? Se for assim, ao contrário da personagem queirosiana, não encolho os ombros, resignadamente.