ÁFRICA, A HISTÓRIA E OS ESCRAVOS

Views: 0

Joao Paulo Esperanca
1fa rtShponscorrlefd

A historiografia salazarista que imaginava uns africanos amorfos à espera de serem descobertos foi infelizmente substituída por uma narrativa equivalente de africanos amorfos à espera de serem vitimizados pelo bicho papão europeu. Havia impérios coloniais africanos antes, e depois, da chegada dos europeus; havia tráfico de escravos negros em larga escala para o Norte de África, para o Médio Oriente, para o Índico, antes de os europeus desenvolverem o seu infame comércio para as Américas… Já é tempo de o discurso popular sobre a História começar a analisar as relações de poder entre todos os atores, em vez de continuar com uma perspetiva infantilizante e eurocêntrica de maus contra bons. Gostaria que os programas de História falassem também sobre os impérios africanos, em vez de transmitirem uma imagem do “bom selvagem” de espírito simples e coração puro eterna vítima do mauzão europeu.
O tráfico de escravos de que os portugueses foram atores importantes aconteceu numa época em que boa parte do mundo via a escravatura como algo de normal, por terrível que essa ideia pareça agora. Os impérios coloniais africanos escravizavam os povos derrotados (e também os vendiam no litoral aos europeus), os norte-africanos escravizavam os europeus, as rotas do tráfico negreiro para países árabes duravam há séculos, até nos quilombos do Brasil havia escravatura… Tudo isso fazia parte de um sistema de valores primitivo que justificava a escravidão. Nalguns lugares do mundo os restos desse sistema de valores ainda sobrevivem. Mas, infelizmente, não se vê muito ativismo da seita dos “Politicamente Corretos” contra esse flagelo atual.

Image may contain: 1 person
Joao Paulo Esperanca added a new photo to the album documentos (História, etc…).

«A alusão de Marcelo Rebelo de Sousa a iniciativas do marquês de Pombal para abolir a escravatura indignou certos sectores da nossa esquerda, em particular os mais ligados às Ciências Sociais e Humanas. Quatro dias após essa alusão, o antropólogo Miguel Vale de Almeida escreveu um texto sugerindo a Marcelo que pedisse desculpa pelo papel de Portugal “no sistema escravocrata e nas suas formas substitutas”. Várias pessoas vieram publicamente secundar e reforçar a sua sugestão. Em minha opinião Portugal deve torcer o nariz a estas propostas, por várias razões:

1. A sugestão de Vale de Almeida parte do pressuposto de que o tráfico transatlântico de escravos e a correspondente escravidão colonial são assunto europeu (e americano), não africano. No seu texto não se menciona a participação africana no processo; só se referem “o Estado português e parte das suas elites comerciais” como “actores centrais no comércio de escravos”. Ora, importa perceber que, excepção feita a episódios de captura nas primeiras viagens de descobrimento, o tráfico foi uma prática que surgiu e se manteve por vontade convergente de traficantes portugueses (e de outras nações ocidentais) e chefias africanas. A ideia de que apenas uma das partes daquela odiosa transacção – a ocidental – seria responsável pelo que ali acontecia é ideia herdada de filósofos e abolicionistas de finais do séc. XVIII, mas é errada e, paradoxalmente, menoriza os próprios africanos que são apresentados como ingénuos, fracos, inferiores ou incapazes, quando provavelmente foram pessoas tão ou mais racionais e argutas do que os brancos que as procuravam para negociar.

A verdade é que, à época, e mesmo que o quisessem, os ocidentais não tinham geralmente meios para forçar os habitantes de África a participar num comércio contra vontade ou contranatura. De um ponto de vista histórico não há, portanto, razão para que Portugal peça unilateralmente desculpa por uma relação que, não obstante a sua desumanidade, foi mutuamente assumida. Aliás, a História não é juiz nem tribunal. Mas, se acaso o fosse, ainda assim haveria pouca matéria para julgar, pois as práticas que agora execramos e punimos não eram entendidas como crime na altura.

2. A criminalização da escravidão e do tráfico de pessoas foi uma das grandes conquistas políticas, jurídicas e morais dos últimos 200 anos, algo que ficámos a dever a quem por isso se bateu. Mas antes de finais de Setecentos nenhuma dessas coisas era crime em nenhuma parte do mundo. Podemos achar chocante que assim fosse mas é essa a verdade histórica. Homens justos e bem formados, de todas as cores e latitudes, considerariam a escravatura infeliz e lamentável, mas ela era admitida, se não incentivada, pelo costume, pela religião, pela política e pela lei.

Dirão: mas a escravatura era considerada crime pelos próprios escravos. Seria? Onde estão os documentos que consistentemente o provem? Eu não os conheço. Conheço, sim, muitos factos que indicam o contrário. Na verdade, raramente sabemos o que os escravos pensavam. Mas sabemos como agiam. Quem estudar a história da escravatura encontrará escravos e libertos que tinham os seus próprios escravos; escravos que uma vez libertados iam traficar escravos na costa de África; escravos que fugiam ou se revoltavam e que, uma vez livres, possuíam escravos nos territórios que dominavam. Não parece, portanto, que, até finais do século XVIII, os escravos considerassem a escravatura como um crime e que agissem em conformidade.

É, por isso, errado julgar as pessoas de outro tempo à luz dos nossos sentimentos e conceitos. E se não podemos aplicar a classificação de crime a práticas que, à época, não eram classificadas como tal, também não podemos onerar e responsabilizar os actuais descendentes de putativos criminosos que, na verdade, ainda o não eram. A História não é uma plasticina que possamos moldar à medida das nossas conveniências ou convicções. Mas se, por absurdo, decidíssemos criminalizar determinadas práticas retroactivamente, quais e como escolheríamos?

3. Entendamo-nos bem: a escravatura dos africanos foi uma forma particularmente violenta, cruel e injusta de exploração humana. Um drama de grandes proporções e implicações. Basta ter visto filmes como Amistad ou 12 Anos Escravo para ficar a perceber todo o horror da coisa. Lamentavelmente, na triste contabilização dos horrores do passado, o tráfico transatlântico não é caso único nem na dimensão, nem nas consequências, nem mesmo na duração. Já lembrei, a propósito deste tema, que os ataques dos nómadas da estepe eurasiática às civilizações agrárias da periferia duraram, com intervalos, cerca de dois mil anos e provocaram muitos milhões de vítimas. Servirão eles para que a Rússia, o Irão ou a China exijam da actual Mongólia um pedido de desculpas? É absurdo. Como seria absurdo se o Médio Oriente em peso exigisse ao Uzbequistão que pedisse desculpa pelas campanhas de Tamerlão, causadoras da morte de 17 milhões de pessoas.

Exemplos destes não faltam, infelizmente, porque a história humana é feita de muita atrocidade. O ideal seria que pudéssemos corrigir males passados, ou melhor ainda, que nunca tivessem acontecido. Mas não temos esse poder e se o tivéssemos se calhar não saberíamos usá-lo. Já seria muito bom que os Estados reparassem as barbaridades e injustiças actuais, as que estão ao alcance da sua mão. Ir para além disso, culpabilizar um povo por acontecimentos ocorridos há centenas de anos é um princípio de responsabilização retroactiva que não tem sentido. Ou melhor: tem um sentido mas não o que parece inocentemente ter. Isso porém será tema para outro artigo. Nele mostrarei de onde vêm e para onde querem ir estas exigências de pedidos de desculpa pela escravatura, e insistirei para que Portugal não vá por aí.»

http://www.dn.pt/…/pedir-desculpa-pela-escravatura-tres-raz…

A legenda da fotografia é: «English: Photograph of an enslaved boy in Zanzibar. National Maritime Museum, in Greenwich, London, England, from the Michael Graham-Stewart collection. Description from source: This extraordinary lantern slide is inscribed: ‘An Arab master’s punishment for a slight offence. The log weighed 32 pounds, and the boy could only move by carrying it on his head. An actual photograph taken by one of our missionaries.’. From at least the 1860s onwards, photography was a powerful weapon in the abolitionist arsenal. Photographic images of slavery provided vivid and irrefutable evidence of the ongoing cruelty of the East African and Indian Ocean trades. They were often used as the basis for engravings reproduced in popular journals such as ‘The Graphic’ and ‘The Illustrated London News’.
Date circa 1890»