AÇORES um drone a estudar baleias

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Durante quase três semanas uma equipa de investigadores esteve no mar dos Açores, entre o Faial e o Pico, focada na recolha de amostras de cachalotes, com recurso a um drone
São 6h35 quando o Physeter começa a deixar o porto da Horta, no Faial. O sol acbou de nascer e consegue furar o manto de nuvens negras espalhadas pelo céu açoriano, alimentando a esperança de que talvez seja possível ver o drne do projecto SnotBot da Ocean Alliance a aproximar-se de uma baleia, sobrevoá-la e recolher amostras do jacto que expira quando vem à superfície. Foi isso que a equipa liderada por Iain Kerr esteve a fazer nos Açores durante quase três semanas. O objectivo é conhecer melhor as baleias, causando-lhes o mínimo de perturbação. Mais tarde, uma criança há-de perguntar à equipa se isto salva os oceanos. “O oceano é como algo a morrer de mil cortes e qualquer coisa que façamos para ajudar, retarda essa degradação diária. Por isso, sim, o SnotBot está a salvar o oceano”, diz Iain Kerr, que estuda as baleias há 30 anos. De pés descalços e lenço vermelho a garantir que os longos cabelos não lhe tapam a visão, o capitão Noberto Serpa conduz o barco para fora da baía. Desde que chegaram, os membros da Ocean Alliance tiveram dias de trabalho muito bons e outros muito maus, em que as condições meteorológicas não permitiram sequer a saída para o mar. Hoje, arrica-se, mas o sol rapidamente desaparece, o vento agita o barco com violência, enquanto este tenta ultrapassar as vagas de um, dois metros. “Se houver baleias, o Norberto encontra-as, não há ninguém melhor”, diz Iain Kerr. Com os olhos verdes fixos no enorme manto de água, o comandante do barco esmiúça cada ponto do oceano, em busca dos cetáceos. Por duas vezes pede para lançarem um hidrofone à água e fecha os olhos, concentrado, tentando ouvir algo que lhe indique que, ali debaixo, nas imediações, andam baleias. Mas, nada. Os vigias nas torres do Pico e do Faial não dão qualquer sinal de avistamentos e, pelas 8h25, com o tempo a piorar e a chuva a juntar-se aos céus cinzentos, parece cada vez mais improvável que alguma das gigantescas criaturas marinhas apareça. “Há que tentar e nunca desistir”, diz o biólogo português André Cid, da Associação para a Investigação do Meio Marinho (IAMM) que, com a colega Joana Castro, participa na expedição (a IAMM é uma das colaboradoras da Ocean Alliance há vários anos). E tenta-se, mas o tempo não melhora e as únicas criaturas que se avistam são os bandos de cagarras que parecem fazer deslizar a ponta de uma das asas sobre a água, enquanto voam à procura de comida. Já se sabe que o tempo nos Açores é imprevisível, mas tantos dias de mau mar em Julho surpreende até o colega que, via rádio, vai falando com Norberto. “Junho esteve melhor, já está assim há uma semana, isto tem de mudar”, ouve-se. André Cid também relata a mesma experiência: “Há umas semanas o mar era uma lagoa”, conta Daniela Coutinho, directora da Fundação Parley for the Oceans em Portugal e na CPLP, mais um dos parceiros da Ocean Alliance, e que assumiu a responsabilidade pela disseminação do projecto SnotBot junto da comunidade educativa.
Nesta terça-feira, naquele que devia ser o último dia de saída da expedição, o mar é tudo menos uma lagoa e, por mais tentativas que se façam, não há forma de as baleias aparecerem. A única alternativa é regressar a terra. Felizmente, não foi sempre assim. Com presença no Faial agendada para entre 22 de Junho e 6 de Julho, a equipa da Ocean Alliance classifica o trabalho desenvolvido como “extraordinário”. Apesar de só terem feito a primeira incursão no Atlântico ao 30º dia e de terem apanhado sete dias de mau tempo, sem hipótese de recolher qualquer amostra, os dias navegáveis (incluindo o dia 7 de Julho, um extra acrescentado às datas iniciais) permitiram recolher um total de 64 amostras de três espécies de baleias diferentes. No total, a equipa avistou oito espécies de baleias e golfinhos. “Isto diz muito da incrível biodiversidade dos Açores. É uma loucura, todos os dias víamos espécies diferentes”, diria, durante a tarde, Iain Kerr aos alunos de dois colégios que tiveram uma sessão online, para poderem questionar directamente os investigadores, depois de terem acompanhado, através de pequenos vídeos, o dia-a-dia da expedição. O objectivo principal desta incursão nos Açores era poder recolher amostras do sopro dos cachalotes (Physeter macrocephalus), a espécie que Iain Kerr mais tem estudado, mas que ainda não tinha contribuído com amostras via SnotBot. Mas, nas águas açorianas, a equipa acabou por recolher também amostras da baleia-sardinheira (Balaenoptera borealis) e da baleia-de-Bryde (Balaenoptera brydei), as últimas das quais foram novidade para a equipa. “Esta última descobriu-se há pouco tempo nos Açores, mas pensa-se que sejam recorrentes por cá. O que se passa é que são muito parecidas com a baleia-sardinheira, por isso, podiam estar a ser mal identificadas. No Algarve, tivemos o primeiro avistamento de sempre no ano passado”, diz Joana Castro. Com o drone não há erro. Quando voa por cima da baleia é possível identificar perfeitamente as três listas que tem na cabeça e que a distinguem. À tarde, Alicia Pensarosa, que na expedição tinha a função de preparar os pratos petri usados na recolha das amostras (garantindo que estavam esterilizados no início e que não eram contaminados por outras substâncias após a recolha de amostras), prendendo-os ao drone e retirando-os no final, descreveria o encontro com as baleias-de-Bryde como “uma experiência única”. “Não eram o nosso foco, mas aproveitamos para recolher amostras, porque são uma espécie em perigo”, explica.
Vekro e pratos petri
Há quase dez anos que a Ocean Alliance começou a trabalhar com drones para captar informação biológica das baleias. Como é que isso aconteceu? Iain Kerr diz que é “uma história clássica de negócio”. Até aí, os investigadores utilizavam uma espécie de arpão que permitia retirar amostras minúsculas do corpo das baleias que encontravam. Mas o método era pouco eficaz e causava sempre algum stress aos animais. “Estávamos no Golfo do México, a jogar ao mais caro whac-a-mole [jogo de tabuleiro em que se tenta acertar numa toupeira antes de ela desaparecer da superfície] de sempre. No final do dia não tínhamos amostras suficientes e fiquei coberto de muco, de uma das baleias. É muito malcheiroso, não é muito simpático. Fiquei a pensar que podia haver algum valor ali”, conta o investigador. Já havia algumas experiências de recolha de amostras de animais selvagens (não baleias) com recurso a drones e a equipa começou a procurar parceiros que pudessem fornecer o instrumento ideal para aplicar este equipamento à recolha do muco das baleias. Desde 2013 que têm desenvolvido este tipo de equipamento, adaptando-o para que se torne “field friendly”, explica o responsável pela expedição. Ou seja, que funcione no campo tão bem quanto nas experiências caseiras. Com tentativa e erro chegaram ao modelo que agora andou a recolher sopros das baleias nos Açores e que acaba por ser extremamente simples: um drone, pratos petri posicionados em vários pontos do objecto voador e colados com velcro. O segredo é posicionar o drone sobre a baleia quando ela vem respirar à superfície, recolhendo o material que sai do espiráculo. Mais simples era difícil, ainda assim Iain está sempre a tentar aperfeiçoar novos modelos. “Dizem que tenho uma ideia nova todas as semanas”, sorri. O líder da Ocean Alliance partilha a função de pilotar o drone com Chris Zadra, enquanto Andy Rogan, coordenador científico da associação, sela e cataloga cada amostra recolhida, que depois será enviada para os laboratórios nos Estados Unidos que trabalham como grupo. As amostras são analisadas para material genético, microbiomas e hormonas. Informação que permite saber se estão perante um macho ou uma fêmea e, neste caso, se ela está grávida ou a amamentar, e se os animais estão ou não saudáveis. O maior objectivo, ainda a ser desenvolvido, é conseguir isolar e estudar devidamente as “hormonas de stress”. Os investigadores gostariam de poder dizer como é que determinada actividade humana está a causar problemas aos animais. “Eu acredito que há pessoas boas em todo o lado, em todas as actividades, precisam é de informação”, diz Iain Kern É isso que os drones estão a ajudar a obter, sem interferir praticamente com as baleias. A imagem captada pelo objecto é transmitida no barco, o que permite aos restantes membros do grupo acompanharem os animais, e em concreto, o seu comportamento. Foi graças ao drone que conseguiram perceber que uma das baleias estava a brincar longamente com um objecto de plástico, utilizado para capturar polvos, e que a equipa recolheu posteriormente do mar. E que permitem a Joana Castro, da AIMM, que nesta expedição observa sobretudo o comportamento dos animais, dizer que, aparentemente, os drones não causam mais do que alguma curiosidade às baleias, não as perturbando.
Democratizar a ciência
A colaborar com a Ocean Alliance desde 2013, a AIMM recebeu um novo drone da associação — uma das forma de “democratizar a ciência”, outro dos objectivos do grupo —, que poderá experimentar ainda este Verão nas águas do Algarve, se conseguir a licença necessária a tempo. É um modelo mais pequeno do que o utilizado nas baleias e que será, provavelmente, usado com golfi-nhos. “Já trabalhávamos com drones, mas não na recolha do muco. O facto de estarmos a ser treinados por uma das melhores equipas mundiais neste campo permite-nos evitar uma série de erros que eles fizeram no início e isso é muito bom”, diz Joana Castro. A bordo da embarcação de Norberto e com o dia perdido para as baleias, a equipa da Ocean Alliance faz o drone voar sobre as águas cinzentas do Atlântico para demonstrar como ele se comporta no mar. Quando se pergunta a Iain Kerr o que aprendeu nestes últimos anos, nos vários pontos do mundo por onde tem pilotado os seus drones, ele não hesita: “Encontrámos mais poluição em sítios remotos do que presumíamos”, diz. Mas a maior descoberta destes tempos, diz, não foi essa. “Só nos últimos quatro ou cinco anos começámos a perceber a interligação das coisas e isso é o que a Ocean Alliance considera a maior descoberta dos últimos cem anos. Se se tirar um único elo da corrente de uma âncora, ela não funciona. É do nosso interesse levar-mos as pessoas a perceber que se tivermos baleias saudáveis temos um mundo saudável. Mas, pela nossa ignorância, estamos a entupir o oceano com lixo.” Pára um segundo, diz que não se quer emocionar, mas treme-lhe a voz quando volta a falar: “Eu não quero viver num mundo sem baleias.” À tarde, às crianças que fizeram várias perguntas sobre as baleias (incluindo se elas “explodem” ou por que é que as caçamos e a que profundidade mergulham), os membros da Ocean Alliance responderam a tudo, porque “democratizar a ciência” também é isto. Um dos miúdos perguntou quando voltam aos Açores, para poder seguir, de novo, a expedição, atirando: “Um dia quero ser cientista como vocês.” O sorriso foi geral. “Gostávamos de voltar, se nos convidarem, porque tivemos um tempo fantástico nos Açores. Mas só se nos fizerem perguntas fáceis”, brincou Iain Kerr.
(Texto: Patrícia Carvalho – Fotografias: Nuno Ferreira Santos – Público de 11/07/2021)
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  • Humberto Victor Moura

    Ainda bem que tudo isto evoluiu para o mais correto ou seja ver os animais como vida e menos interesse económico. Congratulo me por isso, cheguei a ter alguns problemas por defender esse princípio numa altura em que o contrário é que era tido como o co…

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