açores o dia seguinte

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Bom dia humanos!
Porque é de indispensável leitura. Bravo, João Nuno
O dia seguinte
O calendário de maio assinalou o feriado oficial dos Açores, o dia da celebração da autonomia, escolhido para coincidir com a “segunda-feira da pombinha”, sob o Império do Divino Espírito Santo, uma data aparentemente consensual para o Povo Açoriano. Porém, os Açorianos sem vínculos político-partidários sentem-se afastados da autonomia e da Açorianidade. Não é culpa deles, mas do mando, pois «o fraco rei faz fraca a forte gente», e não serão mitomanias de propaganda, como a tarifa Açores a 60 euros e as comendas atribuídas em receção subserviente às tropas engalanadas e aos dignitários da República, a consolidar a autonomia e a aproximar os Açorianos. O tempo do orgulho na Nação Açoriana e na gente com comprovada obra tornou-se uma memória para exposição na Casa Museu da autonomia. Hoje, o Governo Regional escuda-se em discursos redondos, servidos num exercício exibicionista de retórica onanista, e acantona-se à função de agência de emprego para quem se preste à delação, ao vitupério e à solércia. Com despudor, nomeia para cargos de enorme responsabilidade criaturas incompetentes, cujo currículo se esgota no cartão dos partidos no poder. Prega a meritocracia democrática e exerce a cultura da mediocridade. Critica o passado e refina para pior o nepotismo, o amiguismo e o clientelismo da clique. Basta uma leitura do Jornal Oficial, por dever de ofício ou curiosidade, para comprovar o culto à trindade N.S.R. – Nomeações, Subsídios, Resoluções. A classe política, fechada no seu autismo, não repara nos descrentes. Continua em circuito fechado a pavonear-se em Santana, ou a zaragatear no «hemiciclo», sem perceber que o Povo perdeu a fé. Sem perceber que um muro invisível se ergue cada vez mais alto, que existe um poço fundo entre ela e os outros. Outros para quem não basta a noção de autonomia como mero pipeline para as verbas do Orçamento de Estado. Para quem não serve a ilusão de paraíso artificial à medida de deslumbrados turistas acidentais e de duvidosos likes e comentários laudatórios no tripadvisor. Para quem financia, com os seus impostos, observatórios para as doenças sociais, vendo-as espalhar-se à velocidade da luz sem que nada seja feito. Nos Açores, temos uma taxa estratosférica de doenças oncológicas, com uma mortalidade vexatória pelo estalão europeu ou até mesmo nacional. Algum Secretário ou responsável pelo Serviço Regional de Saúde cuidou de mandar fazer um estudo sério, diacrónico e epidemiológico do cancro, saber se resulta de causas radioativas, geológicas ou comportamentais? Ninguém sabe e ninguém quer saber. Lamentamos o recrudescimento das drogas duras, heroína e metanfetaminas para pobres. Alguém tem coragem de enfrentar o problema de frente, pôr equipas a trabalhar na rua e montar salas de consumo assistido por razões óbvias? Não. Vemos as autoridades de semblante carregado, fechadas em salões dourados, a debater tasks forces e think thanks, porque os anglicismos caem bem aos ignorantes, e vemos os polícias ocupados a apanhar uns pés de erva raquítica para autoconsumo, enquanto famílias e comunidades desabam com o flagelo das drogas sintéticas. Assistimos ao boletim diário da epidemia de pedófilos detidos pela PJ por abuso de crianças «em contexto familiar» e não só. Ninguém se interroga se se trata da ponta de um iceberg sórdido, com cifras negras ocultadas por notáveis e poderosos compadres com uma garagem farfalha para as horas de recreio.
Santificamos o turismo, mesmo que tal signifique aceitarmos visitantes a mais, adulterarmos a nossa paisagem com megaestruturas hoteleiras e veículos, destruindo a genuinidade e comprometendo o futuro ambiental destas ilhas. Sem estratégia, formação ou vencimentos adequados condenamos os filhos da terra a um horizonte reduzido a prestar vassalagem ao rebotalho low-cost da europa. Séculos de classismo a estagnar o elevador social. As elites de sempre a explorar uma economia de distribuição, numa terra que quase nada produz, no limiar do monopólio de uma mão invisível, dona disto tudo, que deixa umas sobras para manter o logro de uma economia de mercado livre.
A autonomia está flácida. Rezaram-lhe missa para cumprir calendário e, à exceção dos prelados e dos usuários do pão e do vinho da gamela do regime, foi flagrante a crise de vocações e a diminuição de crentes nos seus desígnios. Ironicamente, nas Lajes do Pico, terra de António d’Ávila Gomes, que advogou em manifesto A Independência Açoriana e o seu Fundamento. Escreveu ele, nesse panfleto editado em Angra do Heroísmo: «os esbanjamentos, as prodigalidades multiplicam-se: o povo é cada vez mais onerado, e levado até ao desespero com novas vexações e tributos; o governo, em lugar de cortar o mal pela raiz, acabando com essa falange imensa de empregados, que exaurem o tesouro, pelo contrário os aumenta e favorece: os delapidadores vivem impunes e o povo é castigado por crimes que não cometeu; a imoralidade, o egoísmo, a imprudência, a loucura campeiam por toda a parte, o pior dos males, porque se não sente: tudo anuncia a miséria que vai abismar-se num pelagra imenso de desgraças, e são os próprios filhos da terra e os que mais deviam trabalhar pela sua conservação e autonomia, que mais profundamente lhe cavam a ruína.»
Hoje, estamos a mais de um século do romantismo liberal de um António d’Ávila Gomes, insuspeito de centralismo Micaelense, como gostam de afirmar os atuais nenucos das coligações de conveniência. Também estamos materialmente em melhor situação do que há 50 anos, na alvorada da barganha autonómica graciosamente reconhecida para travar a sedição independentista, como, aliás, a generalidade do globalizado mundo sob o grande império do progresso. Porém, a autonomia está gelatinosa, presa ao corpo de um governo pesado, colada à obesidade mórbida de um regime alapado a uma dieta de engorda feita de encargos sobre uma maioria silenciosa, para proveito de uma minoria eleita por um número cada vez menor de eleitores livres da venalidade dos votos comprados. No dia seguinte ao das sopas do Divino Espírito Santo, usurpadas ao Povo para glorificar o regime, o arroz doce da sobremesa já azedou há muito, pois, apesar do progresso material, estamos, hoje, como Povo, moralmente corrompidos e espiritualmente falidos.
João Nuno Almeida e Sousa
in Açoriano Oriental de 6 de Junho de 2023
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Luisa Câmara

Sem dúvida tudo dito e bem.
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