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Consumir regional como?
É nas grandes crises, agravadas com o encerramento de fronteiras, que países e regiões se voltam para dentro e dão de caras que descuraram com uma prioridade estratégica para a sua sobrevivência: uma reserva alimentar soberana.
Por estes dias estamos a ser bombardeados com uma campanha regional para consumirmos o que é açoriano, regra básica que deveria fazer parte de cada um de nós o ano inteiro e não apenas nas crises, mas a grande questão, ao mesmo tempo, que todos enfrentamos é óbvia: consumir o quê, se muito do que necessitamos não temos e algum do que temos é, geralmente, economicamente menos acessível?
Isto para não falar no tão badalado “mercado regional”, que não existe, porque não temos um sistema interno de transportes capaz.
O sector agro-alimentar tem sido o parente pobre das muitas políticas e directivas europeias, com uma Política Agrícola Comum desequilibrada, onde imperam os países mais poderosos a invadir de produtos os mais vulneráveis.
O défice global do sector alimentar português, segundo o INE, ultrapassa os 3,7 mil milhões de euros, sendo que somos auto-suficientes apenas em produções de leite, azeite, vinho, ovos, arroz e tomate para a indústria, importando todo o resto dos produtos agrícolas.
Nos Açores sabemos da nossa forte dependência do exterior e nunca nos preocupamos em constituir uma reserva alimentar estratégica, apesar dos inúmeros alertas (e propostas concretas) de pessoas ligadas ao sector.
Dos únicos dados fiáveis e mais recentes que conseguimos do SREA, ficamos a saber que, por exemplo, apesar do apelo ao consumo de produtos regionais, as grandes superfícies comerciais importam muito mais e inundam as suas prateleiras com os produtos de fora, do que com produtos regionais (apesar de alguns progressos).
No ano passado, por exemplo, as grandes superfícies comerciais – as maiores catedrais de consumo, como se sabe – compraram apenas 28% dos produtos alimentares nos Açores (49 milhões de euros) e foram buscar ao Continente e Madeira 67% desses produtos (115 milhões de euros), para além dos restantes 5% no estrangeiro (cerca de 8 milhões de euros).
Os produtos açorianos com maior peso no cabaz alimentar adquirido por essas grandes superfícies é a carne fresca (78%) e peixe (83%), que não dão para equilibrar o défice agro-alimentar.
Num terra historicamente de grande exportação de fruta, hoje somos altamente dependentes do exterior, a julgar pelas grandes superfícies comerciais.
Ela compra apenas 29% de fruta regional, enquanto que importa 70% do Continente. Ou seja, 5 milhões de euros contra mais de 12 milhões!
Este ano, até Março, em toda a região, importamos produtos de agricultura, da produção animal, da caça e da silvicultura no valor de 7 milhões de euros e exportamos apenas 1 milhão.
Em contrapartida, exportamos 6 milhões de euros em produtos de pesca e importamos apenas 14 mil euros.
Também somos bons na exportação de madeira, quase meio milhão de euros até Março deste ano, contra a importação de apenas 20 mil euros.
Até no leite e derivados, em que somos excelentes produtores, as grandes superfícies comerciais compram mais no continente (50%, equivalente a 11,6 milhões de euros) do que nos Açores (46%, equivalente a 10,7 milhões de euros).
Do mesmo modo, as grandes superfícies compram mais pão, pastelaria, bolachas e biscoitos ao continente (59%, quase 7 milhões de euros) do que nos Açores (34%, cerca de 4 milhões de euros).
Até na carne, em que, segundo se diz, temos a melhor do país, as grandes superfícies adquirem no continente produtos à base da carne, como miudezas, salsichas, croquetes, empadas e refeições à base de carne em cerca de 55% (5,4 milhões de euros), enquanto que nos Açores compram 45% (4,4 milhões de euros).
Onde somos mesmo bons é nos ovos, pois abastecemos as grandes superfícies em 92% (1,4 milhões de euros), enquanto os restantes 8% vêm do continente (118 mil euros).
Se observarmos a balança comercial no sector alimentar é fácil perceber que, de ano para ano, estamos a importar cada vez mais.
Em 2018 importamos 249 mil toneladas de produtos alimentares, bebidas e tabaco por via marítima, subindo no ano passado para 284 mil toneladas.
No Comércio Internacional (intra e extracomunitário), no primeiro trimestre deste ano, temos 28 milhões de euros de exportações e 33 milhões de importações.
A lista poderia continuar, mas estes exemplos – incompletos e que não dizem tudo – são uma boa amostra para nos alertar que nos devíamos preocupar mais com a concepção de uma estratégia interna para combater o nosso forte défice de produtos alimentares.
Temos de ser mais arrojados a planear – coisa praticamente inexistente nesta terra – e avançar com uma reserva estratégica agro-alimentar que nos ajude a depender menos do exterior, com a vantagem de criar mais empregos e de nos tornarmos mais competitivos e auto-sustentáveis face às crises nos mercados de abastecimento.
Campanhas bonitas de marketing são sempre bem-vindas e ajudam a despertar o consumidor, mas se não fizermos o trabalho de casa no incentivo à produção e à mão de obra (para não falar na roda viva dos preços finais), não haverá produto regional que nos salve.
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O REGRESSO – Agora que vamos regressando ao “novo normal”, está visto que há a tentação à solta da política tomar conta do espaço da pandemia.
É inevitável, porque a natureza humana não resiste à virologia do aproveitamento das conjunturas. De um lado os que já vão entoando hossanas ao sucesso até Outubro, como a entrada do Rei em Jerusalém, do outro vão ressurgir os esconjurados, afastados e exorcizados do palco nestes últimos meses, ávidos para acertarem contas da pandemia.
Ambos os casos fazem lembrar a terceira esconjuração de S. Cipriano: “Dou fim a esta santa oração e darão fim às moléstias nesta casa pela bichação dos espíritos malignos”.
Ainda se o bicho da política matasse o outro bicho…
(Osvaldo Cabral – Diário dos Açores de 27/05/2020)
