a velha do restelo

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Rumo ao quinto centenário de Camões
A Velha do Restelo
O Velho do Restelo – lamento chocar-vos – talvez não seja um homem. Poderá ser uma mulher. Estaríamos a falar, no fundo, da Velha do Restelo.
Por incrível que pareça, foi na jesuítica revista «Brotéria» que se deu o primeiro passo que levaria, ulteriormente, ao desvendamento da identidade escondida do Velho do Restelo, concretamente no número que saiu em Novembro de 1980.
Nesse volume da revista, o Dr. Joaquim Carvalho publicava um artigo sobre Os Lusíadas em que argumentava o conhecimento, por parte de Camões, do poema «Argonáutica», escrito por Apolónio de Rodes no século III antes da era cristã.
Segundo a análise feita pelo Dr. Carvalho a passos do poema «Argonáutica» (na tradução latina que Camões lera) e a passos d’ Os Lusíadas, haveria pormenores de riquíssimo significado que não eram compreensíveis, na epopeia camoniana, a não ser que aceitássemos que Camões estava a remeter para o antigo poema helenístico.
Li o artigo do Dr. Carvalho há muitos anos e, de imediato, a pista de vasculhar em Apolónio de Rodes galvanizou a minha atenção. Seria possível….? Faria sentido….? Seria aqui que eu encontraria a base para justificar a minha intuição de que o Velho do Restelo era, na realidade, uma Velha….?
Pensei logo na estância IV.90 d’ Os Lusíadas, em que uma mãe chorosa se despede do filho que vai embarcar para a Índia.
Meu Deus…. parecia-me óbvio! Estes versos eram a recriação camoniana da despedida chorosa da mãe de Jasão, antes de o filho embarcar para a Cólquida («Argonáutica» I.261-291).
Pus-me, na altura, a estudar debaixo do microscópio o Canto I da «Argonáutica», comparando-o com o canto IV d’ Os Lusíadas. Não me saía da cabeça a ideia obsessiva de que o Velho do Restelo era um disfarce da VelhA do Restelo.
A resposta apareceu em dois versos misteriosos do poema de Apolónio de Rodes («Argonáutica» I.315-316). Esses versos fizeram-me perceber que o Velho agoirento de Camões é o desenvolvimento de algo que Apolónio elide.
Ou seja: Camões faz-nos ouvir a voz à qual Apolónio tira a fala. As palavras que ficaram por dizer no poema do século III a.C. são ditas, pela pena de Camões, no século XVI português.
Que palavras são essas? No poema de Apolónio, somos colocados perante este momento de mistério e de silêncio: no momento em que os Argonautas estão já a dirigir-se para a nau, avança ao seu encontro uma mulher idosa.
Esta anciã é sacerdotisa de Ártemis e tem algo de urgente para dizer ao herói, Jasão. No entanto, a multidão arrasta o herói até à praia, antes que a anciã consiga verbalizar a sua profecia.
Apolónio pinta em dois versos a imagem da Velha deixada para trás. Vêmo-la sozinha, silenciosa, na berma do caminho. As palavras que lhe ficaram atravessadas na garganta nunca mais serão proferidas – mas Apolónio consegue transmitir a sensação quase palpável de que a sua importância é (ou teria sido) premente.
Nunca mais serão proferidas? Teriam ficado para sempre não ditas, se Camões não tivesse ressuscitado a velha sacerdotisa de Ártemis, colocando as palavras que ela nunca pôde dizer em voz alta na boca do Velho do Restelo:
«Vã cobiça…. ó fraudulento gosto…. Que mortes, que perigos, que tormentas, que crueldades…. Dura inquitação d’alma…. mísera sorte, estranha condição!»
Ora diz-se que os maiores intérpretes literários não são as pessoas das Letras, mas sim as pessoas dos sons, criadoras de música. Ninguém entendeu melhor Goethe do que o compositor Hugo Wolf; ninguém entendeu melhor a poesia de Michelangelo do que o mesmo Wolf ou Benjamin Britten; ninguém entendeu melhor a poesia de Rainer Maria Rilke do que Paul Hindemith.
Em 1975, um jovem de 12 anos chamado Frederico assistiu, no Teatro Nacional de São Carlos, à récita da ópera «O Canto da Ocidental Praia», de António Vitorino d’Almeida. A ópera não foi especialmente bem recebida pelo público e a segunda coisa de que me lembro dessa ocasião foi de ouvir a minha mãe no intervalo, a conversar com o que se chamava na altura o grupo dos «habitués» de São Carlos, sobre a última récita em que a minha mãe lá tinha ouvido ópera. E todos diziam que, no «Così fan tutte» de Mozart, Teresa Stich-Randall tinha sido sublime. O que equivalia a dizer que a presente ópera portuguesa, com os seus cantores portugueses, não era grande coisa.
Se a ópera era grande coisa ou não já não vos saberia dizer –
nem eu confiaria hoje naquilo que teria sido meu gosto musical aos 12 anos. Mas há, de facto, uma coisa dessa récita que ficou na minha cabeça para sempre: a figura do Velho do Restelo, que entra em cena a cantar «Ó vã cobiça!». Não me esquecerei nunca do chapéu à infante D. Henrique na cabeça da cantora.
Sim, da cantora. Porque o Velho do Restelo – pelo menos é essa a minha recordação – foi cantado por uma mulher, Dulce Cabrita.
Em 1975, os jesuítas da «Brotéria» ainda não tinham publicado o artigo que levaria a que, graças ao Dr. Carvalho e (já agora) à minha modesta pessoa, todos percebêssemos o que poderia estar por trás desta intuição artística.
Mesmo sem o Dr. Carvalho e sem estas especulações do futuro Frederico Lourenço (que, em 1975, como já referi, ainda só tinha 12 anos), mesmo assim, a abrir o Verão quente de 1975, o Velho do Restelo assumira-se no palco do Teatro Nacional como Velha do Restelo, saudosa de uma «Idade d’ouro» que, sem que ela o soubesse, estava lentamente a nascer: o Portugal do pós 25 de Abril, de que todas e todos nos podemos orgulhar.
imagem: Giorgione, retrato de idosa
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