A propósito de um espécime taxidermizado de um bovino anão do Corvo existente na coleção do Museu Carlos Machado.

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A propósito de um espécime taxidermizado de um bovino anão do Corvo existente na colecção do Museu Carlos Machado.
É pública a intenção da tutela, leia-se Secretaria Regional da Cultura, da Ciência e da Transição Digital, de subtrair à coleção de História Natural do Museu Carlos Machado um exemplar taxidermizado de uma vaca anã de uma espécie com origem na ilha do Corvo, para a depositar nessa ilha. A proposta que partiu de um deputado, em exercício na anterior legislatura, colheu pareceres negativos dos especialistas da área, e teve, também, a oposição da instituição. Entretanto reeleito o seu autor ressuscitou, a sua pretensão. Aquilo que pode parecer simples não o é, e por isso importa contextualizar esta problemática.
1.º – a coleção de História Natural do Museu Carlos Machado constitui um acervo genético da instituição. Em 1876 Carlos Maria Gomes Machado, reitor e professor do Liceu de Ponta Delgada, funda, naquele estabelecimento de ensino, um museu de História Natural, que incorporava colecções na área da Zoologia, Botânica, Geologia e Mineralogia. Esse sistema (Liceu Nacional-Gabinete de Física, Química e História Natural – Colecção Pedagógica), a que recorreram outras instituições congéneres na época como o Museu de Angra do Heroísmo, foi também o suporte do processo insular de institucionalização das Ciências Naturais, conjugando o quadro legislativo em vigor com as valiosas contribuições dos naturalistas nacionais e estrangeiros (recorde-se a este propósito os contactos estabelecidos, e a correspondência trocada, a partir de 1881, entre o micaelense Francisco de Arruda Furtado e Charles Darwin, um dos expoentes máximos do evolucionismo);
2.º – os naturalistas que “construíram” esta coleção estavam imbuídos do espírito das expedições científicas iniciadas com o Iluminismo, tendo produzido, a par de outros viajantes, e até mesmo de locais, durante todo o século XIX, e início do século XX, narrativas de viagens, corografias, e outros trabalhos, que afirmam um carácter distintivo da realidade natural e cultural do arquipélago açoriano, e constituem representações da singularidade em que radica a construção de consciências identitárias regionais;
3.º – o colecionismo naturalista conheceu grande dinâmica com os gabinetes de curiosidades do Renascimento (onde se acumulavam objectos artificialia e naturalia representativos do conhecimento humano), mas é com as expedições científicas do Iluminismo que se torna, durante muitas décadas, a actividade mais importante do acto de coleccionar. Esse protagonismo que se justificava pela crescente exploração da Natureza pela Economia apoiava-se no estudo daquela, pautado pela investigação que o carácter universal da taxinomia viabilizava sem grande polémica. Foi, portanto, este espírito enciclopedista e classificador da diversidade da Criação, que contribuiu para a organização do conhecimento humano. E é nesses propósitos que radica a transversalidade das colecções de História Natural, condição que se reflecte na sua organização sistemática e no seu conceito expositivo, que evoca a Arca de Noé.
Face ao acima exposto, que contextualiza o carácter pedagógico desta coleção e o seu valor histórico enquanto conjunto, bem como o simbolismo de que ela se reveste para a instituição, manifesto o meu mais veemente repúdio pela pretensão da tutela subtrair, mesmo que temporariamente, a peça supramencionada, ou qualquer outra, que integre a coleção.
Neste momento desconheço se a Associação dos Amigos do Museu Carlos Machado, de que faço parte, tenciona tomar posição sobre a matéria, mas atendendo à pressão que está a ser imposta ao processo penso que se deve intentar uma ação popular contra a Secretaria Regional da Cultura, da Ciência e da Transição Digital, caso este capricho se sobreponha ao interesse da instituição, à integridade e simbolismo da sua coleção genética, e ao conhecimento científico.
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