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A PRAIA É DO POVO
“Há um reduto onde os portugueses não prescindem da propriedade pública. Não são os correios, a distribuição energética, a companhia aérea, os caminhos de ferro, os solos urbanos, a floresta ou até a água. Quando chegam à praia, têm consciência de uma verdade para lá dela: que aquilo que a natureza deu a todos só pode ser de alguém por um qualquer roubo original. Que continua sempre a ser tentado, com reação popular. Com as suas reportagens no Expresso, a Carla Tomás transformou o acesso exclusivo a grande parte das praias de Grândola num tema nacional. A reação pública foi tal que o Governo pediu uma fiscalização da Agência Portuguesa do Ambiente (APA). A conclusão não surpreende: há duas praias de acesso vedado e oito condicionado, excluindo ou dificultando o acesso. Numa, até se exige o cartão do cidadão. E, no entanto, aquelas praias são nossas.
Daniel Oliveira, Expresso, 24/07/2025
Ao contrário do que acontece em muitos países, a nossa lei não permite praias privadas. Quem andou pelo mundo sabe que a privatização acaba na degradação do areal público, “empurrando” quem pode pagar para as praias privadas, onde se vendem “experiências exclusivas”. Essas praias privadas não são melhores do que as nossas públicas. Longe disso. São melhores do que as praias públicas ao lado, que a segmentação social e o abandono degradam. Privados, nós temos os toldos, as espreguiçadeiras e os bares de apoio, cujos preços variam consoante a seletividade social da zona. Uma solução de compromisso entre a exploração empresarial e o interesse geral, aliviando os custos públicos com a manutenção e segurança. Mas qualquer um pode levar o seu chapéu de sol e consumir o que lhe apetecer, com acesso livre e gratuito.
A praia é central na identidade coletiva de um povo que tem o sol e o mar como bens democráticos e conquistou há pouco tempo o direito ao lazer. E é isso que explica a reação popular à notícia de que não há acesso público ao longo de 45 quilómetros de areal em Grândola. Na verdade, a tentativa de fazer seleção social começou com a concessão da travessia fluvial de Setúbal a Troia a uma empresa com fortes interesses turísticos na península e nenhum interesse que o povo lá chegasse, impondo preços proibitivos. Agora, a vontade de vender paraísos escondidos, o beneplácito da autarquia e o zelo da APA oferecem-nos a pior forma de privatização. Fechando caminhos antes abertos e garantindo praias sem estacionamento numa área de quilómetros, afastam-se as pessoas do que sempre foi seu. As praias para onde o clã Salgado ia “brincar aos pobrezinhos” tornaram-se um clube privado sem os custos correspondentes.
Como reação, o Governo diz que vai impor preços máximos ao que seja vendido nas praias. Se são concessionadas pelas autarquias, a elas caberia definir as restrições e condições. Só que as Câmaras não mostram grande empenho. Há mais de um mandato que a de Grândola se “esquece” de lançar um regulamento para a concessão. Sem ele, vem a renovação automática, sem concurso público, transparência ou imposição de restrição. É aí, na contratualização transparente com privados da gestão de um espaço público, que se definem preços e condições. Depois há a APA. É ela que vai autorizando empreendimentos privados sem estacionamento público. A despesa dos hotéis com o transporte direto dos seus resorts à praia é compensada pela oferta de paraísos seletivos, o que inflaciona os preços de hotelaria. Quem não tem carteira só lá pode chegar por trilhos improvisados nas dunas, uma pressão adicional sobre o ecossistema. Depois de anos em silêncio, a Câmara de Grândola, que nunca construiu um parque de estacionamento de retaguarda, promete milhões de euros num passadiço em terrenos municipais para abrir espaço até às praias. Seja qual for a cor do poder, não há melhor do que a pressão popular.
Apesar da estratificação existir e de todas as tentativas de encerrar tudo entre as paredes herméticas do negócio, a praia é o que nos sobra de mais interclassista. Mais que a escola ou o hospital. Mais do que as cidades e os bairros. Um espaço comunitário que resiste à gentrificação de toda a sociedade. Enquanto o turismo urbano comprime os espaços públicos de socialização, ocupados por grandes cadeias hoteleiras, expulsando coletividades, tascas ou cafés de bairro, matando cidades que são cada vez mais iguais umas às outras, sem diversidade social, vida coletiva e lugar de encontro que as faz lugar de vida, a praia resiste. Porque o povo não está disposto e entregar a ninguém o que é de todos. Lembra-nos que somos mais do que clientes. Somos uma comunidade.”
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