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A minha Avó Maria, afinal, NUNCA falou Português
Uma das coisas que é mais gratificante ao, por aqui, ir tentando partilhar a nossa essência, para lá da maior ou menor adesão, é a aprendizagem que obtenho com os inúmeros comentários que vão sendo deixados. Ontem, uma Senhora escreveu um, do qual extraí este elucidativo excerto (para mim, pelo menos): «Depois desta leitura, vi realmente o português com que balbuciei as primeiras palavras bem escrito […] Eu chamo-lhe, orgulhosamente, o português dos meus avós, pais e ainda meu».
A referida Senhora, Maria Antónia de seu nome, inadvertidamente, revolucionou a visão que tinha. Ficar-lhe-ei eternamente grato por isso! Tudo porque mencionou, entre outras coisas, «o português com que balbuciei as primeiras palavras bem escrito» ou «o português dos meus avós». O que me transportou, de novo, à já «célebre» minha Avó Maria. Pensamento puxa pensamento, à conclusão cheguei de que a “nh’ábó” NUNCA falou Português. Tal como muitas outras avós e avôs, NUNCA terão falado Português.
A minha Avó Maria nasceu em 1913. Nunca frequentou a escola, por isso constando do imenso número de analfabetos que foram imagem de marca de Portugal. Como tal, e de facto, NUNCA aprendeu Português. A língua que ela falava tinha-a aprendido através da transmissão oral dos seus pais, os meus bisavós que não conheci. Suponho que esses meus bisavós também nunca tenham frequentado a escola. Especialmente no século XIX, no qual as taxas de analfabetismo, no Portugal rural trasmontano, rondavam os 80% no sexo masculino, subindo essa percentagem acima dos 90% para o sexo feminino.
Presumo, portanto, que esses meus bisavós se incluíssem no vasto grupo populacional que Leite de Vasconcellos identificou como falando «Mirandês», ou uma sua variante dialectal. Ou seja, a minha Avó Maria falava uma variante do Ásturo-Leonês que tinha aprendido, oralmente, com os seus pais. Por isso, os meus colegas «alfacinhas», que apenas se comunicavam na “língua fidalga”, a norma-padrão, o Português, me perguntaram que língua falava a minha Avó…
Subitamente, recuei aos meus tempos de «estudantezeco» em Lisboa. E recordei-me que tinha por lá um grande amigo, de Macedo, tal como eu. Embora estudantes na mesma universidade, éramos de cursos diferentes. Mas raro era o fim-de-semana no qual não nos encontrássemos, ou indo eu para as «tainadas» com os colegas dele, ou o inverso, vinha ele para a «copofonia» com os meus. Naquilo que julgávamos ser uma mera brincadeira, quando pretendíamos que ninguém nos entendesse, ou queríamos troçar com os restantes, malvadez de jovens, falávamos “à Macedu’e”, como lhe chamávamos.
Vulgar sendo, no meio de um jantar, sair, com pronúncia carregada, um “abonda d’i um carólu’e”, ou um “bota lá mais um catchu de pinga”, ou um “tchega aí u caçoulu da tchitcha”. Ou passávamos a utilizar os pronomes “ou, mou, tou”, ou os derivados de «ele» no plural, “eis, deis, aqueis, daqueis”, entre tantas outras coisas, onde também entravam “tchítcharus’e”, “érbançus’e” ou ”coubes-trontchas’e”. Recorrentemente fazíamos uso do “bô”, do “bem m’ou fintu’e”, do “c’mu quera”, sem “sequera” ponderarmos que, de facto, estávamos a comunicar-nos num idioma distinto do Português. Por isso não nos entendiam…
Mais nos divertíamos a fazer contas em “me’ réis”. Bem ao género de, dividida a conta, dar “binte deis me’ réis” a cada um. Atónitos ficavam os comensais perante a moeda que utilizávamos. Hoje, enquanto pensava sobre esses episódios, fui assolado pela expressão que tantas vezes usámos, o “bota a bubere uas cerbeijas”. Inevitavelmente, lembrei-me do «Mirandés»… E pensei para com os meus botões: “Rais’parta! Pois, em Mirandés, «beber umas cervejas», escreve-se «buber uas cerbeijas»!”… Estão a entender?… Nessas paródias, nós não falávamos deturpando o Português! Nós falávamos, mesmo (!), noutro idioma!!!
E, creiam, só hoje me apercebi, com clarividência, desse facto. Em simultâneo me apercebendo por que entendia, ao mesmo tempo, a minha Avó Maria, que NÃO falava Português, e os meus colegas «alfacinhas», que Português falavam. Reparado tendo que a “nh’ábó” não intervinha muito quando a conversa decorria em “língua fidalga”, agindo de forma semelhante àquela que acontecia quando alguns dos membros da família, também filhos e netos da emigração, desatavam a «parler en français», demonstrando um alheamento que só os “belhotes’e” sabem fazer. “Ele hai cousas du catantchu’e”!…
E, de facto, as minhas conversas com a Avó Maria só eram consequentes e profícuas, quando falávamos em “língua tcharra”, a variante do Ásturo-Leonês que era a sua língua materna! Variante essa que, sem consciência ter, também eu tinha aprendido, quer nos contactos com ela, quer naqueles que mantinha quando fazia as minhas incursões à aldeia. E deixava de dizer «a minha avó», passando para “a nh’ábó”, ou «o meu tio», transformando-o em “u mou tiu’e”. Ou a «chuva» passava a “tchuba”, a «água» a “auga”, o «descer» para “decere”, as «escadas» para “scaleiras’e”, o «descalço» para “zcalçu’e”, ou o «nu» para “couratchu’e”…
A minha Avó Maria, afinal, NUNCA falou Português, idioma do ramo do Galego-Português, porque NUNCA o aprendeu. Só aprendeu a comunicar-se numa versão de Ásturo-Leonês, que é, afinal, tudo menos o «português dos nossos avós». É, sim, o Ásturo-Leonês dos nossos avós! Há dias tão felizes!… “Caralhitchas’e, que contchu stou’e! E zculpim qualquera cousinha”… Perante isto, “tchaldra-me” que a D. Maria Antónia, cujo magnífico comentário deu azo a isto, não terá balbuciado as suas primeiras palavras em Português, mas sim numa versão de Ásturo-Leonês dos seus avós e dos seus pais. Estou-lhe tão grato!
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