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Em 1975, o duelo só se realizou depois de os dois líderes terem sido enganados pela RTP. E um dos moderadores teve de se levantar a meio
Fonte: A mentira do debate entre Soares e Cunhal
O bluff da RTP
Convencer Soares e Cunhal a enfrentarem-se na televisão implicou contactos intensos entre a RTP e os dois partidos. Em pleno PREC (Processo Revolucionário em Curso), com o país à beira da guerra civil entre comunistas e os simpatizantes de outros partidos, depois de várias trocas de cartas e telefonemas sem resultados, a RTP decidiu fazer bluff para forçar os dois homens a comparecerem.
“Eu fui desonesto”, admite à SÁBADO Joaquim Letria. “Disse a cada um que o outro já tinha aceite”. Encontrou-se pessoalmente com Soares na antiga sede do PS, e depois com Cunhal, na sede da Soeiro Pereira Gomes. Em 15 minutos, ambos aceitaram. O primeiro a ceder foi Soares. Depois foi Cunhal”. O então director-adjunto não se arrepende de ter usado este truque: “Se não fosse isso, ainda hoje estava à espera”.
José Carlos Megre lembra-se desta decisão, que recorda quase como um ultimato aos dois líderes: o debate iria realizar-se mesmo que apenas comparecesse um dos candidatos. Quem faltasse passaria por cobarde aos olhos dos espectadores, que nesta noite se concentraram nos cafés e frente às montras das lojas de electrodomésticos.
Soares pensou preparar-se fazendo uma simulação do debate com Victor Cunha Rego, seu chefe de gabinete, mas este rejeitou: “O melhor que você tem a fazer é ir para casa e dormir.” Como contou a Maria João Avillez no livro “Soares, ditadura e revolução”, o líder do PS fez a sesta à 5 da tarde e quando acordou tomou um banho quente, antes de se dirigir aos estúdios do Lumiar.
Tinha ficado acordado que na primeira parte os dois políticos responderiam a perguntas dos moderadores e na segunda poderiam fazer perguntas um ao outro. Rapidamente se percebeu que as regras iam ser subvertidas. A resposta à primeira pergunta, sobre um possível entendimento entre PS e PCP, levou os dois líderes a dar réplicas sucessivas ao longo de uma hora.
Aos 20 minutos, o realizador percebeu a intensidade do confronto e decidiu subitamente dividir o ecrã para mostrar os dois líderes em permanência: Soares mais descontraído, mas sempre ao ataque, Cunhal a tomar notas e a falar a gesticular de caneta na mão, a queixar-se das constantes interrupções do socialista, ou a sorrir quando era confrontado com acusações mais violentas – foi à meia-hora de debate que Soares acusou o seu opositor de querer instaurar uma ditadura comunista, o que levou Cunhal a retorquir com o célebre “olhe que não, olhe que não”.
Os moderadores, sempre embrulhados numa nuvem de fumo, introduziram apenas mais três perguntas (que leram a partir de um papel) sobre a independência de Angola, sobre a autoridade dos militares e sobre a independência da comunicação social. De resto, assistiram e admitiram em pleno debate: “É quase um crime interromper”.
Antes do intervalo, Letria preparava-se para ler a pergunta com que queria reabrir a segunda parte, mas Soares não deixou: “É melhor na altura própria, para não tirar o suspense aos espectadores”.
Não ficou definida a duração do debate: “Hoje como diz a imprensa o programa não tem limite de tempo, mas também não poderemos estar aqui por muito mais do que, no máximo, vá lá, duas horas”, avisou José Carlos Megre.
Um assistente a gatinhar
Quando a conversa já se prolongava há quase três horas e meia, numa altura em que ainda não havia intercomunicadores, um assistente de realização agachou-se e, para não aparecer no ar, gatinhou até à mesa dos pivôs e deixou-lhes um bilhete a avisar que o debate tinha de terminar, porque se estava a acabar a bobine e não se encontravam mais, porque o armazém estava fechado.
José Carlos Megre decide então sair do ar para ir resolver pessoalmente o problema. Procura um segurança, pede-lhe que destranque o armazém e carrega duas bobines para o estúdio.
Nos minutos em que o apresentador foi tratar desta emergência, os espectadores até podiam não ter dado por nada (Cunhal e Soares disfarçaram), mas o realizador Herlander Peyroteo decidiu mostrar em grande plano a cadeira vazia ao lado de Joaquim Letria. “Foi uma partida que me fizeram. Ainda hoje não percebo porque é que ele fez isso”, recorda Megre, que no fim do debate viria a trocar o nome do secretário-geral do PS, chamando-lhe Álvaro Soares. “Recebo agora uma indicação do estúdio, temos cerca de 30 minutos de bobine no máximo”. E desafiou-os a continuar o debate, mas apenas se repetiria em 1997.
No fim foi lido um telex com uma notícia de última hora: “Pelas 23h55 rebentou junto da sede central do PS na Rua da Emenda um petardo com grande estrondo”. E depois um último aviso: “Devido ao adiantado da hora, já não há Telejornal”. Eram 2 da manhã.
Ao longo da emissão, os telefones da RTP bloquearam, por haver tanta gente a querer comentar o debate. Não havia ainda medições de audiência, mas pelo impacto José Carlos Megre está convencido de que foi o programa mais visto de sempre da televisão portuguesa.
Dois dias depois, no Expresso, o subdirector Marcelo Rebelo de Sousa, então com 26 anos, sublinhou a “escassa capacidade televisiva de Cunhal” e concluiu: “Mário Soares teve anteontem uma das suas melhores intervenções políticas públicas”.