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COMO SERÁ A LÍNGUA DOS SENTINELESES?
(A minha crónica de hoje no Sapo 24.)
Cada doido, sua mania. Oiço falar dos Sentineleses, a tribo isolada que matou um maluc… missionário que lá quis ir — e a primeira coisa que penso é: como será a língua deles?
Ora, sabemos pouco sobre essa língua, mas sabemos algumas coisas…
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1. É uma língua que os vizinhos não compreendem
Não, não são só os missionários vindos de longe que não conseguem compreender frases simples como «Faça o favor de se afastar se não quer levar com uma seta na tromba.» ou «Esse Jesus parece ser boa pessoa, mas temos mais que fazer.».
Num dos poucos contactos entre os Sentineleses e os habitantes das ilhas em redor, os vizinhos conseguiram perceber uma coisa: não percebiam nada do que eles diziam — ou melhor, do que eles lhes gritavam de setas alçadas. Ou seja, mesmo que as línguas fossem, há uns milénios, parecidas, os séculos e séculos de isolamento afastaram-nas irremediavelmente.
Não é nada de espantar. Sem um oceano em redor, as línguas dos vários povos latinos afastaram-se muito em dois míseros milénios. O que dizer de povos a viver em ilhas há tanto tempo, com contactos muito esporádicos?
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2. É uma língua que, enfim, existe…
Não os compreendemos, mas sabemos uma coisa: os Sentineleses têm uma língua, como acontece com todos os grupos de seres humanos. Parece que nem todos usam roupa, por exemplo. Mas língua? Ainda está por encontrar a tribo que se tenha esquecido de falar.
Como é que isto aconteceu? Como é que a linguagem se tornou essencial aos seres humanos?
Há duas correntes (simplificando um pouco). Alguns linguistas sublinham a maneira como a linguagem é uma ferramenta cultural, inventada em certo ponto da nossa História. No fundo, o uso da linguagem será como a roda: uma vez inventada, tornou-se tão útil que ninguém a dispensa. Mas não nascemos — segundo esta perspectiva — com algum tipo de mecanismo linguístico impresso no cérebro. Se alguém quiser investigar um pouco o que dizem estes linguistas, pode começar pelo nome mais famoso: Daniel L. Everett (por exemplo, no seu livro Language: The Cultural Tool).
Outros linguistas sublinham o carácter biológico da linguagem: temos aparelhos fonadores e cérebros adaptados ao uso da linguagem — basta pensar que as nossas gargantas seriam muito diferentes se não fosse a necessidade de falar. Afinal, nós temos a infeliz capacidade de nos engasgarmos (ao contrário dos outros símios) porque as gargantas estão feitas para falar. Quando alguém morre com um pedaço de pão na garganta, está a pagar com a vida o preço de poder falar. Isto, claro, não significa que as línguas não sejam artefactos culturais — mas usam um mecanismo biológico (o aparelho fonador e uma peculiar arquitectura do cérebro) partilhado por todos os humanos. Um dos linguistas que propõem esta perspectiva é Steven Pinker (por exemplo, no seu livro The Language Instinct).
O debate é muito interessante — e não vale a pena fingir que posso dar aqui uma imagem minimamente realista dos argumentos de uns e outros. Mas posso apontar para um outro livro, chamado The Evolution of Everything, de Matt Ridley. Num dos capítulos, o autor traça uma imagem que junta estas duas perspectivas e me parece muito razoável. Tal como no caso da invenção do controlo do fogo, a invenção da linguagem teve implicações biológicas. Como passámos a cozinhar, as nossas mandíbulas tornaram-se diferentes das dos outros símios. Ora, uma vez inventada a linguagem, os nossos corpos e os nossos cérebros começaram a mudar.
Seja como for, não há povo que não tenha uma ou mais línguas. E, como aconteceu há poucas décadas com a língua gestual nicaraguense, se um grupo de pessoas vive em conjunto sem que alguém lhes ensine uma língua, começam a desenvolver uma língua própria.
Sem pretender resolver um debate que irá continuar por muitas e boas décadas, a linguagem humana parece ser um facto cultural e biológico. Pelo menos, parece que os diferentes idiomas são transmitidos culturalmente, mas todos os seres humanos têm cérebros e bocas biologicamente preparados para falar.
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3. É possível aprender o sentinelês
Ora, tendo em conta o que disse acima, temos outro facto sobre a tal língua desconhecida. Teoricamente, uma qualquer criança humana que fosse exposta ao idioma desde a nascença (viesse donde viesse) iria aprendê-la tão bem como um sentinelês.
Ou seja, teoricamente, podemos aprender aquela língua como podemos aprender qualquer língua do mundo — na prática, não é possível: porque ninguém consegue conversar com os seus falantes.
Não há muito a fazer: não sejamos tão loucos como o morto. Que fariam aquelas pessoas se aparecêssemos por lá aos gritos: «Ensinem-nos a vossa língua!»?
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4. É uma língua complexa
As culturas são diferentes. Esta declaração não me parece muito difícil de aceitar… Podemos também dizer, sem grande medo de errar, que há culturas com instituições mais complexas do que outras.
No caso das línguas, não conhecemos o sentinelês, mas conhecemos as línguas de tribos isoladas noutros locais no mundo (ou mesmo nas ilhas vizinhas). E, ao contrário do que muitos pensam, essas línguas não são necessariamente mais simples do que as nossas línguas europeias, com séculos de escrita às costas.
Há línguas faladas por tribos isoladas com gramáticas que nos deixam de boca aberta: conjugações verbais ainda mais complicadas do que a nossa, subtilezas espantosas, distinções que nos parecem inacreditáveis.
Além disso, todas as línguas permitem criar um número infinito de frases. Todas as línguas têm uma gramática própria. Todas as línguas têm um vocabulário adaptado o seu uso — e a possibilidade de o expandir, se houver necessidade.
Por isso, não sabemos quase nada, mas sabemos que a língua dos Sentineleses tem uma gramática complexa (como todas as línguas), uma gramática que permite criar um sem-número de frases. Uma gramática que permite conversar, insultar, amar, divertir, aborrecer…
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5. Aprender a língua não chega
Imaginemos que alguém se aproximava da ilha sabendo (por um estranho milagre) a língua daquela tribo. Diria palavras como «venho em paz» ou «por favor, não me matem já».
Será que sobreviveria?
Talvez ajudasse — mas nada garante. Afinal, saber a língua do outro não é receita certa para a paz.
Os problemas dos seres humanos não existem porque falamos línguas diferentes. Há tantas e tantas guerras entre gente que fala a mesma língua… E, da última vez que fui ver, a actividade dos tradutores (espécie na qual me incluo) parece não ter impedido a existência de guerras ao longo da História — e tradutores há desde sempre…
Diria até que, em certos casos, perceber o que outro diz pode ser uma emenda pior do que o soneto do contacto sem palavras. Se os Sentineleses tivessem compreendido que o senhor vinha para convencê-los a mudar de religião — e, já agora, a usar roupa, que aquilo de andar nu não está de acordo com os bons preceitos bíblicos —, talvez a seta que o matou tivesse sido atirada uns segundos mais cedo. Nunca se sabe.
Enfim: quando tentamos aprender a língua do outro, damos um bom passo. Mas é só um passo. As grandes barreiras que separam povos diferentes ou pessoas que vivem no mesmo prédio — às vezes na mesma casa — são outras: ideias diferentes, religiões diferentes, visões do mundo diferentes, ou talvez uma desconfiança ancestral ou um mal-entendido momentâneo. A própria vontade de espalhar as nossas ideias pode ser uma causa de conflito: afinal, aquela morte teve muito que ver com a vontade de espalhar as crenças próprias entre quem deseja viver em paz na ilha onde sempre esteve.
Enfim, a verdade é que sou humano e, como tal curioso. Não me atrevo a lá ir, mas não resisto a imaginar: como será a língua dos Sentineleses?