a limpeza étnica da língua

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Porque vale a pena pensar:
O que você acha da iniciativa do pessoal da internet de implantar um “gênero neutro” na língua portuguesa?
Não tem base linguística, não contribui a uma sociedade mais justa e é uma mudança cosmética no idioma, totalmente infundada. Se me permite dizer o que penso, é uma grande tolice. Tome a imagem das mulheres afegãs. Com todo o respeito que eu devo a essas mulheres que sofrem uma desigualdade tremenda no seu país por causa da ignorância dos que detêm o poder político e social sobre elas, acho que os que adotam a linguagem neutra porque supostamente um género neutro seria garantia de igualdade no tratamento a ambos os sexos (ou aos que não se identificam com sexo algum) nem sequer imaginam que a língua oficial do Afeganistão, do Irão e do Tajiquistão é “neutra”, destituída de géneros gramaticais. Sim, o persa é exatamente assim, nenhum traço de género, nem nos substantivos nem nos adjetivos. Para dar um bom exemplo, “o amigo” e “a amiga” neste idioma são ditos com uma só palavra, que não tem artigo definido ou forma específica para o masculino ou o feminino. O vocábulo original é “dūst” (“دوست” em alfabeto árabe, “дӯст” em cirílico). Se, portanto, a ausência de género nos levasse a crer na “modernidade” do persa nesse aspeto, então, como explicar que o talibã e o regime dos aiatolás não sejam exatamente o que se pode chamar governos feministas? Nem sequer tolerantes com as minorias sexuais? Ora, a condição da mulher nesses países está longe, muito longe de ser invejável, e nos dois primeiros a homossexualidade ainda é passível de pena de morte. Que o persa falado por lá seja um idioma “inclusivo” não interfere em nada, uma mulher afegã ou um homossexual afegão ficariam felizes se pudessem viver em Lisboa ou no Rio de Janeiro, mesmo tendo que falar um idioma como o nosso, tão “machista” em comparação com o persa. Por favor, um pouco de bom senso: algo não encaixa com a teoria da utilidade da linguagem neutra.
Voltemos à pergunta: dizer o quê? Duvido muito que essas pessoas consigam ser coerentes consigo mesmas e falar assim no quotidiano. Soa estranhíssimo aos ouvidos e para dizer a verdade cansa. Vamos por partes. Em primeiro lugar, é totalmente redundante começar a mencionar sempre ambos os géneros gramaticais em frases como “os professores e as professoras”, quando a forma mais curta “os professores” sempre bastou por si só para expressar a mesma ideia. Além de ser redundante, alonga desnecessariamente a frase, e na comunicação oral e escrita sabemos muito bem que o tempo é precioso. Quem estiver disposto a perdê-lo ainda que um pouquinho, que não se queixe dos resultados práticos, o primeiro deles é abrir mão da naturalidade e a consequente obrigação de prestar mais atenção. Uma pessoa que queira expressar-se assim terá que se vigiar constantemente para não acabar voltando atrás depois.
Na gramática o que chamamos às vezes de masculino genérico não significa que a mulher seja excluída da frase. Ela está incluída de maneira implícita, principalmente se a frase estiver no plural. Se estiver no singular, o sujeito poderá ser de qualquer sexo se for desconhecido ou se não se o quiser especificar: “O aluno desobediente será suspenso”, “aquele que quiser o melhor produto deverá pagar mais caro para obtê-lo”. Tanto aluno como aquele são de qualquer sexo imaginável. Quem não conhece o adágio popular “o bom filho a casa torna”? Pois filho aqui pode se referir ao filho varão ou à filha mulher, pouco importa. Acredito que ninguém em sã consciência seria capaz de interpretar a frase “todos os cidadãos são iguais perante a lei” como exclusivista (só seriam iguais os homens), pois o contexto é claro. Ao falar de leis, tem-se entendido que é para todo mundo. Além disso, a gramática portuguesa estabeleceu que o género das palavras muitas vezes fosse totalmente aleatório: as vítimas, as autoridades, as testemunhas, eis aqui palavras em princípio femininas, mas que incluem implicitamente indivíduos de qualquer sexo. “As autoridades pediram calma à população”. (Quem? Aqueles que estão no governo ou que ocupam uma posição de liderança num determinado grupo ou sociedade, claro, e na maioria das vezes podem ser tanto homens como mulheres… contanto que não se esteja a falar de autoridades eclesiásticas num contexto católico). Na sua opinião o masculino genérico é “injusto”? Justo ou injusto, faz parte da gramática da língua, todos os falantes falam desse jeito. Como o português não é uma língua construída intencionalmente como o esperanto, mas uma língua natural como a maioria das línguas com ou sem género gramatical, nenhuma das suas características gramaticais é voluntária (aqui eu falo de gramática descritiva, não de gramática prescritiva, mesmo que a segunda normalmente derive da primeira).
Em português sexo biológico e género gramatical não têm relação direta na língua portuguesa. Quer exemplos? Diálogo, desejo, ardor, parabéns, botão, lápis, caderno, tomate, freio, motor, anel, bracelete, colar, cabelo, ânus, dedo, pé, puma, leopardo, jaguar, jacaré, avestruz, bolo, açúcar, pinhão, bebé, conselho, augúrio, sortilégio, feitiço, gnomo ou anjo são palavras masculinas, mas são femininas as palavras conversação, saudade, crítica, dor, solidão, televisão, chave, carta, medalha, condecoração, unha, mão, pele, íris, onça, jaguatirica, garagem, chantagem, formiga, serpente, melancia, ginja, farinha, pinha, caneta, batata, admoestação, bruxaria, fada e assim por diante. Por qual razão areia, argila e terra tem que ser palavras femininas, mas pó, solo e chão são masculinas? Quem é capaz de entender isso? Tanto os conceitos mais abstratos como as realidades concretas dos seres e das coisas sempre puderam receber qualquer um dos dois géneros gramaticais da nossa língua, não há regra para isso.
Algumas palavrinhas bastante comuns são epicenas, ou seja, descrevem qualquer sujeito, independente do sexo: profissional, pediatra, adolescente, cliente, comunista, budista, cientista, presidente, vidente, paciente, artista, general, etc., com esses substantivos posso falar tanto da Maria como do José: “dizem que ele é um mal profissional”, “aquela adolescente gosta de atividades físicas”, “Cristina Krirschner foi presidente da Argentina”, “fulano é budista”… No português impera uma desordem total, não existe uma regra fixa para o uso do género gramatical do tipo “toda palavra terminada em a é feminina” ou “todo substantivo masculino tem que terminar em o”, e quando existe, há várias exceções. O idioma é aleatório na escolha do género e de muito mais, mas detrás da desordem há o uso das palavras, os seus significados, o seu peso: tudo foi sendo testado pelos falantes durante séculos e o que servia ficou; o que não servia, adeus.
A linguagem inclusiva estabelece uma uniformidade assustadora, quer pôr ordem na casa de supetão. Exagerando a importância da questão sexual e transplantando uma reflexão sociológica e política ao terreno do idioma, ela sonha em “corrigir” através dele um problema que ele nunca gerou. Como se bastasse incluir explicitamente alguém na fala para que todas as injustiças contra essa pessoa se resolvessem da noite para o dia. A língua portuguesa por si mesma nunca foi machista, as pessoas é que o são (salvo as exceções). Não há defeitos gramaticais em jogo, o que pode existir é machismo nas sociedades, coisa que se resolve com uma mudança de mentalidade, não com uma mera revisão do dicionário. Outrora a palavra gay era motivo de orgulho, pois além de homossexual (cuja origem remonta ao século XIX, na área da psicologia e da medicina) todas as outras mais coloquiais eram consideradas ofensivas: invertido, marica, maricas, larilas, chegado, rabeta, etc. Para não citar piores… Agora quando alguém diz “seu gay!” considera-se insulto em muitos lugares do Brasil. Uma simples mudança de vocabulário não basta, é a mentalidade que precisa ser repensada.
Em resumo, a intenção é boa (dar visibilidade às mulheres). Mas parte do ponto de vista duvidoso de que é a língua portuguesa que vai fazer isso, e não as ações concretas das pessoas na sociedade. É uma ideia absurda, cosmética e perigosa, porque desvia a atenção das pessoas dos verdadeiros objetivos da luta feminista e dos LGBT+ (dentro dos quais se inclui este que vos fala). Visibilizar verbalmente as mulheres e colocá-las ao lado dos homens em tudo o que se diga, acaba alargando desnecessariamente as frases, além de inevitavelmente excluir os indivíduos que não se reconhecem em categorias sexuais, ou talvez alguns transexuais. Sempre haverá aqueles que não se identificarão nem com um sexo, nem com o outro, e para eles ficará “elas por elas”, como diz o ditado.
Richard Aerts
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