a lei do mar

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“Suspeito que a visão centralista do Tribunal Constitucional se tenha aprofundado”
Armando Rocha, professor da Faculdade de Direito da Universidade Católica e diretor-adjunto da Católica Global School of Law, não encontra motivos jurídicos para que a Lei do Mar seja considerada inconstitucional, mas confessa estar pessimista quanto à decisão final do Tribunal Constitucional
Armando Rocha, professor da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa e diretor-adjunto da Católica Global School of Law, com tese de doutoramento na área de Direito do Mar, não acredita que o Tribunal Constitucional decida a favor da Região, no processo de fiscalização abstrata da “Lei do Mar”, pedido por um grupo de 38 deputados da Assembleia da República. A nova legislação reconhece às regiões autónomas poder sobre o ordenamento e gestão do seu mar, mas este grupo de deputados considera que a integridade da soberania do Estado está em causa.
Qual a sua opinião sobre a solução legislativa que prevaleceu na Lei do Mar, e que não coincide exatamente com o que foi proposto pela Região?
A solução que foi encontrada e que estará a ser discutida no Tribunal Constitucional é relativamente conservadora e não atribui a plenitude de direitos que poderia atribuir às Regiões Autónomas.
O que está na base desta alteração à designada Lei do Mar é o Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores (RAA) que prevalece sobre a legislação, ou seja, tem de ser respeitado pelas leis e decretos-lei. E a solução encontrada no artigo 8º dos Estatutos era a de gestão conjunta ou partilhada da gestão do mar envolvente à Região Autónoma dos Açores entre a Região e o Estado português. Ainda que o conceito de partilha não esteja explicitamente definido, partilha significa partilha. A solução não poderia ser 8 ou 80, por isso não poderia ser atribuído tudo à Região, nem tudo ao Governo da República, tinha de se encontrar uma solução intermédia, entre o 40 e o 60.
Mas a solução é conservadora, porque atribui pouco à Região, e, em termos de partilha, dá mais ao Estado do que à Região. Apesar de tudo é mais generosa do que a versão original, a qual é claramente ilegal e inconstitucional. Poderíamos ter mais direitos e isso não seria ilegal, tal como possuir os direitos que estão previstos na nova versão da lei também não é ilegal, nem inconstitucional. O que está escrito na nova versão da lei é possível perante os Estatutos e perante a Constituição. Portanto, não vejo nenhuma razão do ponto de vista jurídico para que esta lei aprovada na Assembleia da República venha a ser declarada ilegal ou inconstitucional pelo Tribunal Constitucional.
Onde poderíamos ter ido mais além?
O centro desta relação residia nos direitos de a Região adotar planos de ordenamento do espaço marítimo e/ou de emitir parecer vinculativo em relação ao mar dos Açores. Julgo que se poderia ter ido mais longe na assunção de competências pela região, na definição do que seja do que seja um processo codecisão ou nas áreas para além da jurisdição nacional, nomeadamente na plataforma continental alargada, mas isso não foi acolhido na versão final.
Não há nenhum problema de legalidade e de constitucionalidade com esta redação, e poderíamos ter sido mais ousados e ainda assim estarmos dentro da legalidade e da constitucionalidade. Até podíamos ter sido mais ousados em relação à proposta da Assembleia Regional e ainda assim estaríamos dentro da margem da legalidade e constitucionalidade.
Contudo, o problema não é estritamente jurídico, é político. Há uma grande falta de sensibilidade por parte de órgãos nacionais, um problema de visão, de preconceito até no sentido lato do termo, quanto ao que é ser-se insular. E as regiões não têm uma voz forte junto de alguns meios decisórios, e isso reflete-se, desde logo, no Tribunal Constitucional, onde não há nenhum mecanismo que dê voz à vivência própria das regiões.
Espera que a Região seja surpreendida com uma decisão favorável do Tribunal Constitucional, tendo em conta o histórico de decisões nesta instância?
Não espero. Até suspeito que a visão centralista do Tribunal se tenha aprofundado. Por isso, não acredito que haja uma decisão a favor da Região.
Posso estar a ser pessimista, mas julgo que vai ser declarada inconstitucional, e portanto o processo legislativo vai voltar ao início.
Este grupo de deputados, com esta decisão de recorrer ao Tribunal Constitucional, revela que a Região ainda tem muito trabalho a fazer de sensibilização do poder central?
Sim. É o problema de que falava de preconceito, porque não é fácil para quem não cresceu numa ilha perceber porque o quanto é que isso nos diferencia, porque é tão importante a relação de um insular com o mar envolvente.
Esta falta de sensibilidade nos órgãos de soberania em geral, incluindo no parlamento e no Tribunal Constitucional, reside na ideia de que uma região autónoma (RA) é mais ou menos uma grande autarquia.
Esta era a visão original do decreto-lei anterior, no qual o papel da RA era procedimentalmente limitado e paralelo ao de uma autarquia local. Na mente do legislador e do Tribunal Constitucional, uma RA era uma espécie de uma grande autarquia local. Por isso é que não acredito que haja grandes novidades.
O Presidente da República não con- siderou haver risco para os direitos constitucionais do Estado nesta le- gislação, mas o Tribunal Constitu- cional poderá ter um entendimento contrário…
Sim. O Presidente da República sendo um constitucionalista sabe o que diz, quando o diz. Mas julgo que não quererá invadir a esfera de competências do Tribunal Constitucional, e por isso as posições que adota devem ser lidas com alguma latitude.
O que pode a Região fazer, de um modo geral, para mudar este preconceito? Haverá necessidade de mudar a forma como é ensinado o Direito Constitucional de modo a sensibilizar para as especificidades das regiões autónomas, e por outro lado, criar um lobby para que no Tribunal Constitucional haja alguém dos Açores?
Julgo que, do ponto de vista simbólico, a Região devia ter tentado surgir no processo como assistente. Não está previsto para o processo constitucional, pois é mais uma figura do processo civil, mas julgo que do ponto de vista simbólico era importante testar esta hipótese num processo constitucional. Eu julgo que seria indeferido, por isso teria mais peso simbólico do que propriamente jurídico.
O que a figura do assistente prevê, numa linguagem muito simples e imprecisa, é que se um interesse meu está a ser discutido num processo entre terceiros, eu tenho o direito de surgir naquele processo para defender e explicar o meu interesse, a minha posição. E é o que se passa neste processo. É estranho que se esteja a discutir os poderes da Região e esta não apareça no processo. Não deixa de ser estranho que aqueles cujos interesses estão em jogo não tenham uma voz autónoma neste processo.
A Assembleia da República aceitou que a Região contribuísse com o seu parecer a enviar ao Tribunal Constitucional…
Mas isso foi feito na posição jurídica da Assembleia da República. E, do ponto de vista simbólico, teria sido importante testar, mesmo sabendo que iria ser rejeitado, para que ficasse mais claro que o interesse ali em causa é o interesse de uma região autónoma.
Quanto ao ‘lobby’, esta é uma palavra perigosa e sujeita a segundas interpretações… Há uma grande desconfiança por parte do Governo da República quanto às medidas que possam vir a ser adotadas pelas regiões autónomas, que possam pôr em causa obrigações internacionais do Estado Português, como obrigações de proteção do ambiente marinho, mas se esta é uma preocupação basta ver os planos de proteção do ambiente marinho adotados nos Açores e na Madeira, com os que foram adotados no continente. Nas regiões autónomas, há muitos mais instrumentos de proteção do ambiente marinho. E a razão é simples: nós sim somos afetados diariamente pelo que se passa no oceano
No caso de se confirmar a inconstitucionalidade da Lei do Mar, não há possibilidade de contestar isso a nível europeu, por exemplo?
Por mais criativo que possa ser, não vejo nenhuma alternativa que possa ter o mínimo de viabilidade.
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Fátima Silva, Artur Neto and 22 others
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