A GUERRA DAS CRIANÇAS POR ANTÓNIO BULCÃO

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A guerra das crianças
Eram guerras a brincar.
Cóbois contra índios, castelos contra castelos.
Não tínhamos televisão no Faial, nos anos sessenta do século passado. Nem playstations, telemóveis, internet, nada do que hoje em dia é banal. Tínhamos que nos safar. E inventávamos jogos.
Não sei a razão pela qual a guerra entrava nesses jogos. Seriam os pequenos livros de banda desenhada, cada um de nós querendo-se Búfalo Bill fora do papel? Seriam os filmes no Teatro Faialense, sonhando cada um dos putos ouvir troar na Espalamaca os Canhões de Navarone?
A verdade é que não sabíamos o que era guerra, para além dos livros que trocávamos entre nós, já leste este? e das grandes metragens que faziam as paredes do cinema estremecer.
E era a brincar. Nos castelos, a coisa mais próxima de violência que vivi foi dentro de uma barraca feita de canas e plástico no quintal do Raulinho. Lá dentro, a planear invasões inconsequentes, sentimos pequenas pedras a cair sobre o plástico do telhado e saímos esbaforidos, podia ser tremor de terra. Mesmo a tempo. O filho do vizinho preparava-se para deixar cair sobre nós uma pedra do muro divisório.
Ai tal calhau. Teria sido a nossa Hiroshima de certeza. Cabeças rachadas ou gesso para uma perna, para os colegas autografarem na escola. O filho do vizinho não sabia brincar…
Como não sabiam brincar os rapazes do castelo da ribeira. Usavam farpas de guarda-chuva em vez de setas de plástico. Aquilo se entrava na barriga de uma perna era injecção contra o tétano suplementar. Não sabiam brincar, eram brutos e inconscientes. Guerra, só a brincar.
As verdadeiras guerras deviam passar-se muito longe, para trás do Pico. Mas a gente só sabia delas muito tempo depois, nas páginas de “O Telégrafo”, e não ligávamos muito. Às vezes um mais velho ia para a guerra do Ultramar e voltava com os olhos esbugalhados, metido na aguardente logo de manhã. Às vezes não voltava…
Só muitos anos depois, com a televisão, comecei a “ver” a guerra. Casas caídas, buracos de bombas, gente morta. Nos anos 90, vi a guerra em directo, deitado na cama. No Iraque. Uns traços de luz para um lado, chamados scuds, que atacavam, outros traços de luz, chamados patriot, que defendiam. De noite. Não se via nada de jeito, devo confessar.
Hoje, vejo a guerra depois dos mísseis e dos drones. Nos olhos das crianças. Na Faixa de Gaza, na Ucrânia, em Burkina Faso, na Somália, no Sudão, no Iémen, na Nigéria, em tantos outros países e regiões.
Crianças magras de fome, agitando um tacho, à espera de lhes calhar uma sopa aguada, com sorte uma batata a boiar. Acotovelando-se aos milhares para se chegarem à frente, antes que o caldeirão mor fique vazio.
Crianças gravemente feridas, entrapadas de gaze, aos gritos em tendas que só por terem uma cruz pintada se podem chamar hospitais. E sangue nas suas cabeças, nos seus corpos raquíticos, a dor a sair pela televisão fora e a ficar no quarto, imensa, colada às paredes de breu quando apago a luz para tentar dormir.
As que ainda não levaram com uma bala, com um estilhaço, conseguem sorrir. Mas nos seus olhos não vejo o reino dos céus.
E que Deus perdoe os adultos que não as deixam brincar.
António Bulcão
(publicada hoje no Diário Insular)