a espiral da História

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19 de junho de 2020

A espiral da história

Leonete Botelho
leonete.botelho@publico.pt

Há quem acredite que a história nunca se repete e quem sacralize a lições da história – e ambos têm razão. Os tempos que vêm atrás dos tempos a mim sempre pareceu virem em espiral: passam pelos mesmos temas, levantam os mesmos tipos de questões, procuram soluções inovadoras que nos hão-de colocar noutro patamar, mas prontos a cometer os mesmos erros e a começar tudo outra vez.

Cinco bombeiros tinham acabado de controlar um foco de incêndio perto de Figueiró dos Vinhos e voltavam ao quartel. Entraram na EN 236-1 e foram apanhados por uma nuvem de fumo. Sem visibilidade e no meio de temperaturas do inferno, um carro que vinha em direcção contrária embateu de frente com o camião em que seguiam. Ninguém sobreviveu no automóvel – os seus ocupantes fazem parte da lista de 44 pessoas que perderam a vida naquele dia, naquele lugar. Fez esta semana três anos.

Os cinco bombeiros estão vivos, marcados a fogo no corpo e na alma, “a lutar todos os dias para curar as mazelas causadas pelo incêndio de 17 de Junho de 2017” e já a lidar com “a frustração de terem feito um esforço que pode ter sido em vão, face à acumulação de combustível nas florestas dos três concelhos onde morreram 66 pessoas e ficaram feridas mais de duas centenas”, como nos conta o André Borges Vieira. Fica o aviso: Pedrógão foi ontem mas pode voltar amanhã.

Portugal foi um dos países europeus que melhores resultados teve na primeira fase da luta contra o Covid-19, graças à declaração precoce do estado de emergência e ao confinamento obrigatório que impôs. Mas agora, passado mais de um mês sobre o início do desconfinamento, os números de contágios diários são preocupantes e alguns comportamentos – como a festa de aniversário em Lagos que já resultou em 69 novos doentes – lançam o alerta dentro e fora de portas. Não aprendemos nada com os últimos meses?

Pelo menos 10 países já colocaram restrições à entrada de portugueses e, como diz o Manuel Carvalho no editorial de hoje, “cada país que fecha as fronteiras aos portugueses agrava a percepção externa de que, entre nós, o vírus está à solta; cada notícia que nos coloca no rol dos piores índices de contágio por 100 mil habitantes aumenta as dúvidas entre quem quer investir ou visitar o país; cada dia em que Portugal mostra um número de contágios acima de países como a Espanha ou a Itália acrescenta uma nódoa à credibilidade que construímos na primeira fase da pandemia. Sim, temos um problema grave e só uma perfeita consciência do que se está a passar pode ajudar a superá-lo”.

Em perfeita consciência sobre o seu passado colonial e esclavagista, a França prepara-se para construir um memorial de homenagem às vítimas da escravatura, que será instalado no Jardim das Tulherias, um dos principais destinos turísticos e lugar de memória de Paris. “O projecto exprime a vontade de honrar as vítimas da escravatura e de reconhecer o seu contributo inestimável para a nação”, diz o anúncio de abertura do concurso de ideias.

Já nos EUA, parece faltar um pouco de memória sobre como as decisões do passado lançam até hoje a sua sombra. O Alexandre Martins foi ao baú para nos lembrar o compromisso político que o Partido Republicano fez em 1876 e que, embora tenha servido para tirar o país de uma crise constitucional, permitiu o regresso dos supremacistas brancos ao poder e abriu as portas à segregação racial que ainda hoje se sente, em particular no sul.

Nas décadas seguintes, a segregação racial passou a ser lei nos estados do Sul, e milhões de negros foram privados do direito ao voto conquistado após a abolição da escravatura.

Nova desordem mundial

Num mundo em profunda transformação, custa ver tantos erros repetidos. O que não se faz, ainda hoje, em nome de uma boa eleição? John Bolton, ex-conselheiro de Segurança Nacional de Donald Trump, escreveu um livro em que, entre muitas acusações, afirma que o Presidente norte-americano pediu ao Presidente chinês favores políticos para aumentar as hipóteses de reeleição no sufrágio de Novembro. Trump tentou evitar estas e outras revelações, pedindo aos tribunais que impedisse a circulação do livro The Room Where It Happened. Mas o livro já está aberto…

O que há de novo nisto tudo é, afinal, muito antigo: a emergência do novo Império do Meio é uma realidade instalada desde, pelo menos, 2010, quando a China chegou ao segundo lugar do pódio das economias mundiais, sendo já então o maior importador e exportador mundial. Entretanto continuou a comprar e a vender por esse mundo fora e só agora, em plena pandemia originária da região industrial de Wuhan, Bruxelas parece querer conter o avanço de empresas chinesas na Europa.

Com uma apresentação subtil, mas um alvo claramente definido, a Comissão Europeia desvendou na quarta-feira um plano destinado a impedir que empresas estrangeiras impulsionadas por capitais públicos exteriores à União Europeia se tornem accionistas maioritárias de empresas europeias em sectores estratégicos. O Pedro Crisóstomo explica-nos como.

No Brasil – potência-promessa que tarda em se cumprir -, parece haver hesitações no regresso ao passado que estava a ser traçado. Envolto em sucessivas crises – de saúde pública, políticas e judiciais – o Presidente Jair Bolsonaro continua a criar inimigos dentro dos seus maiores apoiantes. Desta vez, é o principal ideólogo do Governo – e, para muitos, o artífice do despertar da extrema-direita brasileira nos últimos anos, o escritor e professor Olavo de Carvalho – que dispara contra o Presidente que ajudou a eleger. “Continue inactivo, continue cobarde e eu derrubo essa merda desse seu Governo, Governo aconselhado por generais cobardes ou vendidos”.

Boas notícias vieram esta semana do campo da ciência para o combate à Covid-19. Enquanto se iniciam os testes das primeiras vacinas que podem começar a ser distribuídas ainda este ano, um grupo de investigadores da Universidade de Oxford anunciou os resultados positivos dos tratamentos feitos com Dexametasona em doentes que precisaram de estar ligados a um ventilador ou a receber oxigénio. O medicamento reduziu o risco de morte para os doentes que estão ligados a ventiladores em um terço e em 1/5 para os pacientes a receber oxigénio através de botijas.

Disneyland Portugal

Apesar do crescente número de infecções na capital portuguesa, esta semana tornou-se oficial que Lisboa vai receber a fase final da Liga dos Campeões. Quartos-de-final, meias-finais e final serão disputadas entre 12 e 23 de Agosto, Porto e Guimarães são hipóteses para os jogos que ficaram por disputar nos “oitavos”, e ainda está em estudo o cenário de haver espectadores nos estádios. Uma oportunidade de ouro para Portugal, como defendem os responsáveis políticos? Ou somos apenas uma espécie de Disneyland para os ricos, como diz uma amiga minha?

Certo é que Portugal continua a ser uma Disneyland para os bancos, como comprovou esta notícia do PÚBLICO, ao revelar que o contrato de compra e venda do Novo Banco ao fundo americano Lone Star prevê que os efeitos negativos de “um cenário de extrema adversidade”, como uma pandemia, nas contas da instituição possam ser compensados por uma injecção automática do Estado para repor a sua solidez. O Presidente da República ficou “estupefacto”, a Assembleia da República pediu (finalmente) o contrato e o Governo já garantiu que não há injecções automáticas. Veremos…

Já para os migrantes, Portugal não é nenhum parque de diversões. Na segunda-feira, 22 homens sem documentos foram retidos depois da embarcação em que seguiam ter sido interceptada em Vale do Lobo, ao largo de Loulé, pela Polícia Marítima. É o quarto barco de madeira vindo de Marrocos que chega ao Algarve desde Dezembro, e os migrantes são todos da mesma cidade: El Jadida. Agora, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras já suspeita de uma rede de auxílio à imigração ilegal.

Quem diz que em Portugal não há extrema-direita engana-se. Ainda esta semana o Ministério Público acusou 27 homens de crimes de ódio contra gays, comunistas e negros, estando alguns arguidos indiciados por agressões violentas, ameaças de morte e tentativa de homicídio. Os crimes eram “rituais de iniciação” do grupo, que reunia homens entre os 24 e os 50 anos, entre eles um guarda prisional, um revisor da CP e um taxista.

A fechar…

… Um convite para um Regresso ao Futuro solidário. Amanhã, dia 20, mais de duas dezenas de artistas vão a uma vintena de palcos por todo o país, à mesma hora, com a solidariedade como cenário. É o festival Regresso ao Futuro a “voltar a ligar o som e a acender as luzes , resgatando-nos ao silêncio e ao afastamento”. Nos Palcos da Semana, temos outras propostas culturais, online e offline, para o fim de semana.

Para terminar esta espiral, voltemos ao início em modo artístico. Manuel de Sousa, criador da página de Facebook Porto Desaparecido, resolveu dar cor às fotografias antigas a preto e branco e assim trazer de volta a realidade que não tinham. “Quando vemos uma imagem a cores, parece que, de repente, a fotografia se torna actual. É essa a ideia que gostávamos de recuperar: tornar as pessoas mais reais e romper a barreira com o passado”, diz ele. Isso ajuda ao objectivo que persegue: “Ir buscar inspiração à história para enfrentar o futuro”.

Com tal inspiração, que tal pintarmos o presente com as cores que queremos para o futuro?

E não deixe de passar pelo PGlobal para ler estas e outras notícias que marcam o nosso tempo.

Bom fim de semana!

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