a demência

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Quando saiu a notícia de que o Bruce Willis tinha sido colocado num centro especializado, houve quem ficasse surpreendido.
Um homem milionário, com acesso aos melhores médicos, com uma família inteira a apoiá-lo…
E mesmo assim, a esposa e os filhos decidiram que ele precisava de cuidados especializados, naquele regime de “daycare” clínico onde há profissionais, rotinas, vigilância constante, estimulação e segurança.
E porquê?
Porque ele tem demência frontotemporal, a mesma que a minha mãe tem.
E é aqui que muita gente precisa finalmente de ouvir a verdade, sem rodeios:
A demência frontotemporal não é o mesmo que um idoso mais esquecido.
Não é o mesmo que confundir o almoço com o jantar.
Não é o mesmo que ficar mais lento.
É outra liga. É outra violência. É outra realidade.
No caso da minha mãe, por exemplo, ela não ficou agressiva.
Ela não insulta.
Ela não diz asneiras.
Ela simplesmente perdeu o vocabulário. Deixou de conhecer as pessoas . Perdeu a autonomia . A mulher mais desenrascada que conheci passou a ser dependente .
Diz palavras soltas, sons que não se encaixam, frases que não têm início nem fim.
É como viver num eterno eco.
Mas o mais perigoso não é isso.
É que ela fugia.
Várias vezes.
Abriu portas.
Saiu de casa.
Desorientada.
Sem saber quem era, nem onde estava, nem para onde ia.
E este risco , o risco de uma pessoa desaparecer , ninguém imagina até acontecer.
Não é “coitadinha, deixem-na em casa”.
Porque em casa é que o perigo é maior.
É uma doença que tira a noção de perigo, as regras sociais, o sentido do tempo, o controlo dos impulsos.
E quem cuida entra num estado de exaustão que não se descreve. Vive-se.
E depois há a ideia completamente errada de que “basta contratar cinco empregadas”.
Como se isto fosse sobre limpeza, sobre comida, sobre banhos.
Não é.
Isto é sobre um cérebro que deixou de obedecer às regras.
É sobre proteger a pessoa dela própria.
É sobre impedir fugas, quedas, pânicos, desorientação total.
E isso nenhum cuidador inventado aguenta 24 horas por dia.
Por isso é que, tal como a família do Bruce Willis, muitas famílias , incluindo a minha, tiveram de tomar decisões difíceis.
Sinalizar.
Internar.
Proteger.
E quem nunca viveu isto… julga.
Porque é mais fácil julgar do que tentar compreender.
E antes de alguém vir com a conversa do “os velhos devem morrer em casa”, deixem-me explicar o outro lado. Primeiro, a minha mãe tem 67 anos e vive com esta doença há uns 8 anos pelo menos .
A minha avó.
A minha avó esteve lúcida até ao último momento.
Teve esquecimentos, claro. São 95 anos de vida.
Trocar o almoço pelo jantar, achar que era noite quando ainda era dia, meter-se na cama às três da tarde…
Isso é idade.
Isso é desgaste natural.
Isso não é demência.
E porque nunca perdeu quem era, ficou em casa dela.
Porque era a vontade dela. Porque tinha autonomia. Porque nunca foi perigo para si.
E porque prometi quando tinha três ou quatro anos que nunca a meteria num lar , e cumpri essa promessa até ao fim.
Mas o que ela teve foi um privilégio raro: lucidez até morrer.
Um privilégio que nem todos têm.
E é preciso dizer isto sem medo: nem todos podem ficar em casa. Nem todos estão seguros em casa. Nem todas as doenças permitem casa.
O meu avô, por exemplo, também não pôde.
Teve o mesmo padrão da minha mãe.
Queria fugir, queria sair, falava como se tivesse 18 anos, perguntava pelo pai e pela mãe.
Perdia-se.
Confundia o presente com o passado.
E apesar de reconhecer toda a gente e verbalizar tudo, não tinha controlo sobre os impulsos.
E isso é perigoso demais para ignorar.
No centro de dia, ele floresceu.
Tinha informática com as animadoras, ria-se, sentia-se útil.
Sentia-se a trabalhar.
Sentia-se alguém.
E foi feliz lá , dentro do possível.
E é isso que muita gente não entende:
Estes sítios não são “lares de abandono”.
São centros de bem-estar, segurança, estrutura e dignidade.
São o sítio certo quando a casa já não é.
E depois há a pergunta que fica no ar, a que dói, a que custa admitir:
“E quando for eu?”
Eu só peço uma coisa:
Que seja rápido.
Que não seja demência.
Não me interessa a idade interessa-me a lucidez.
Já me chega aquilo que a vida me deu, já me chega aquilo que vi, já me chega a bipolaridade.
Peço só que o meu cérebro nunca me traia da forma como vi o cérebro dos meus morrer.
E se um dia me trair, que alguém tenha a coragem de fazer por mim aquilo que eu fiz por eles:
Proteger-me.
Mesmo quando o mundo inteiro não entende.

Sobre CHRYS CHRYSTELLO

Chrys Chrystello jornalista, tradutor e presidente da direção da AICL
Esta entrada foi publicada em saude medicina droga. ligação permanente.

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