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Da série “CRÓNICAS DE HOJE E DE SEMPRE”, já que não se fala noutra coisa senão n’
A BLIQUINHA DO DAVID
Já não é a primeira vez que tal me acontece: tentar encontrar esta palavra num dicionário e nunca dar com ela, mesmo escrevendo-a de formas diferentes.
Quando andava na recruta no Convento de Mafra – recruta do exército, não para ser ordenado frade -, éramos apenas dois açorianos no meu pelotão: eu e o Zeca M. Ávila, um praiense que, infelizmente, nos deixou muito novo. Acontece que tínhamos um colega de caserna, alentejano de nascença, que era um tipo brincalhão e espirituoso. Não me lembro o nome dele, lembro-me é que esse fulano tinha amigos micaelenses com os quais ele aprendeu que blica era um termo muito em uso nalguns lugares dos Açores, de forma que, quando se queria referir a mim ou ao Zeca, ele chamava-nos os “Blicas”. Por sorte nem chegámos a completar a recruta, portanto a alcunha que o alentejano nos atirou perdeu-se nos corredores do convento.
Não quero que os meus leitores se ofendam com esta brincadeira, acho que não estou a ser insolente ou mal-educado. A minha dúvida, e até já andei à volta dela numa crónica escrita há muitos anos, é descobrir qual é a maneira correta de escrever a palavra em questão, e isto se realmente ela existe no léxico português. Só a encontrei num pequeno livrinho de termos e expressões populares da Terceira, compilados por Ana Rita Carvalho. Mas lembro-me perfeitamente de a usar e de a ouvir da boca de outros desde mesmo a minha meninice, quando jogava às bolinhas de vidro e havia que declarar que “Blicas dá Palmo!” ou quando algum amigo se zangava comigo e me mandava ir “brincar com a blica prá areia!” Nessa crónica anterior eu até pedia ajuda para que me indicassem o modo certo de escrever, seria blica, bilica ou belica, como pronunciam uns amigos biscoitenses. Assunto que deixo de novo à vossa consideração, já que estamos a atravessar tempos conturbados para a anatomia do David.
Ora, o David em questão é fulano duro e maduro. Duro porque foi esculpido num bloco de mármore pelo famoso artista Michelangelo, que terminou a sua obra por volta de 1504. Portanto, o David, ao longo dos seus quase 520 anos de idade, já teve tempo de se transformar numa “pessoa” mais do que madura, habituado aos olhares de milhões de humanos, que lhe vasculham as formas e as gretas. Desde a nascença que nunca viu o seu corpo coberto por roupas, sejam esculpidas na pedra ou de tecidos iguais aos que protegem muitas das estátuas de deuses e santos que nos enchem as igrejas. Se o Michelangelo decidiu que o David estava muito bem assim, há que respeitar a opinião dele; aliás, há uma outra versão do mesmo herói, esculpida em bronze, anos antes, pelo não menos famoso Donatello, em que o David tem como vestuário apenas um capacete e umas botas altas, portanto também com a pombinha a descoberto.
Estas obras de arte, assim como muitas outras que mostram o corpo humano (feminino ou masculino) a nu, sejam estátuas, estatuetas, pinturas ou desenhos, são isso mesmo, obras de arte onde a beleza das formas é mais do que evidente, não são trabalhos pornográficos. Misturar as duas coisas é sinal de falta de educação e de respeito pelo trabalho dos artistas. Tenho ali bem guardado, fora dos olhares dos meus netos, uma relíquia da loja do meu pai, esse sim um Santo António malcriado, que não tem nada a ver nem com religião nem com artisticidade e permanece reduzido à sua insignificância, desde que saiu das Caldas da Rainha, há quase cem anos. A estátua do David não merece andar envolvida no problema criado numa escola da Florida, só porque um senhor administrador achou que os protestos de três pais de alunos eram bem fundados e.… rua com a professora que teve o descaramento de, numa aula de arte clássica, trazer o trabalho do Michelangelo para assunto a discutir.
Desculpa-se o administrador com o argumento que há três meses foram introduzidas novas regras que determinam que os pais devem ser informados com duas semanas de antecedência quando assuntos controversos fizerem parte do plano das aulas. Parece-me que o problema apenas reside na definição de “assunto controverso”. Os professores deixarão de ter autonomia no que vão ensinar e sujeitam-se a seguir à risca o que lhes é politicamente imposto pela direção da escola ou do distrito escolar. Não é de admirar que o caso veio à tona no Estado da Florida, onde começam a despontar situações semelhantes, resultado do empenho de forças conservadoras que têm como principal objetivo tomar o controlo de tudo o que diz respeito ao ensino, desde as escolas primárias até às Universidades. Sabem que têm as costas bem protegidas pelo governador do Estado, um sujeito bem-falante que está a preparar a sua candidatura à presidência do país. Entre ele e o Destarelado, que venha o Diabo e escola.
Dizia um articulista a semana passada que as próximas eleições nos EUA serão decididas precisamente nas discussões das direções das escolas. É aí que se aquecem os ânimos, que se tomam atitudes muitas vezes antissociais ou antidemocráticas com vista a derrotar tudo o que seja progresso. Mais recentemente, acentua-se a luta contra o que consideram “Woke”, um papão que os conservadores hasteiam para assustarem os seus possíveis apoiantes. Tal como acontece com o definir o que é assunto controverso, também aqui tudo está pendente do modo de definir o que é considerado “Woke”, um conceito que poucos entendem o real significado, mas que é o cavalo de batalha de muitos candidatos republicanos. Vi outro dia um repórter pedir a um desses papagaios que lhe explicasse o que é isso de “Woke”; o interpelado papagueou e andou à roda a meter os pés pelas mãos, sem fazer sentido no seu discurso. É possível que eu também tivesse feito figura de parvo, esses conceitos modernos – o Wokismo, ou o “cancel culture”- são temas a que ainda não me habituei e me enriçam os neurónios.
Os tempos são de mudança. E não é só na Florida que se vêem estas cenas tristes. Noutros Estados, principalmente nos de maioria conservadora, as assembleias legislativas não têm mãos a medir, é um tal desbaratar o que está estipulado e propor leis que refletem o andar do caranguejo, seja em medidas para limitar a interrupção voluntária da gravidez, dificultar o direito ao voto a certos segmentos da população ou introduzir regras estúpidas no ensino, chegando ao ponto de abolir das estantes das bibliotecas escolares livros de autores clássicos e que já andam em circulação há dezenas ou centenas de anos, alguns até tão antigos como a estátua do David.
Caso para dizer que, gente como esta não interessa nem à pombinha do Menino Jesus!
Amén!
Lincoln, Califórnia, Março 27, 2023
João Bendito
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