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Carta a António Costa
Caro António: esta é a segunda carta que te escrevo. A primeira, como te lembras, foi sobre a forma vergonhosa como trataste e continuas a tratar os professores de Portugal. Apeteceu-me escrever-te mais vezes, nomeadamente sobre a maneira como geriste os incêndios que mataram pessoas, ou sobre as medidas que foste tomando sobre a pandemia. Mas manterei o meu princípio de não fazer política sobre tragédias. Seguissem tal princípio os teus correligionários aqui nos Açores, e o ar ficaria bem mais limpo…
Manterei o tratamento por tu. Como te lembras (ou talvez não), fomos colegas na Faculdade de Direito e, embora tenhamos seguido caminhos muito diferentes, tenho a certeza de que não tolerarias que te chamasse por senhor doutor ou, ainda menos, senhor primeiro-ministro. Fica, assim, o tratamento que usámos na cidade universitária.
Vejo nas notícias que não terás conta à ordem em banco algum. Que só terás declarado ao Tribunal Constitucional seres titular de uma conta a prazo. Dirás ser pouco motivo para te escrever esta cartinha, mas fiquei mesmo muito curioso, e explico por quê.
Quando andávamos a estudar, não havia cartões de débito, como te lembrarás. Tive de abrir uma conta no então Banco Português do Atlântico, conta onde o meu pai depositava todos os meses 4.500$00, um dinheirão na altura. Mas dava para pagar o quarto, com direito a roupa lavada e um banho por semana. Nos outros dias ia correr para o Estádio Universitário, para ter direito a duche e não me apresentar nas aulas a cheirar a queijo de São Jorge. A mesada dava ainda para o passe social, para comer na cantina e para uns extras, cinema de vez em quando ou um bitoque na Cova Funda, Bairro de Santos. Mas tinha de ir ao balcão do banco sempre que me faltava o cascalho na algibeira.
Claro que contigo devia ser muito diferente, sendo continental. Devias receber diária em mão do pai, pelo que seria dispensável teres conta bancária. E “massa” para pequenas despesas, um café aqui, um jogo de flippers ali, já que certamente dormias e comias em casa.
Quando voltei para os Açores comecei a dar aulas e era exigência da escola ter uma conta à ordem aberta, para me depositarem o ordenado. Abri a mesma no Banco Micaelense, depois Banif, depois coisa nenhuma e lá ia ao balcão levantar carcanhol para as minhas precisões.
Alguns anos mais tarde chegaram os cartões de débito, o banco ofereceu-me um e lá aderi à modernice, a princípio desconfiado como um rato, com o passar do tempo mais confiante, e hoje em dia não me vejo sem cartão de débito para levantar dinheiro numa caixa multibanco, para um pagamento de serviços, para uma transferência bancária…
Perdoa então a curiosidade, talvez até a impertinência, mas como é que tu fazes, sem teres conta à ordem num banco? Onde te depositam o ordenado, que é certamente maior que o de um professor? Vais buscar os milhares à tesouraria? Guardas numa caixinha, dentro de uma gaveta, e depois vais tirando para as necessidades? Pagas tudo em dinheiro?
Sei que a probabilidade de leres estas linhas é quase nula e a de me responderes ainda mais inexistente. Mas se por milagre tal acontecer, satisfaz esta humilde curiosidade de um antigo colega. É que, como professor de Economia, tenho de explicar aos meus alunos a evolução da moeda e a desmaterialização da mesma. Explicares como faz um 1º Ministro para gerir o seu dia-a-dia sem conta à ordem seria uma enorme ajuda…
Antecipadamente grato, sou
António Bulcão
(publicada hoje no Diário Insular)
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