memórias, guerra civil Timor (Tito Duarte)

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CONTINUANDO…

Regressemos a Lemos Pires e à sua odisseia. Após a declaração pública, e dramática, lida, aos microfones da emissora pelo tenente-coronel Maggiolo Gouveia, comandante da polícia, cerca das onze horas e meia da manhã do dia14, a situação agudizou-se, ainda que a maior parte dos militares timorenses se mantivesse, por enquanto, solidária com os seus comandos. Mas essa aparente unidade começara a abrir brechas, primeiro com a deserção do 1º. sargento Inácio dos Santos, vindo de Manatuto e a sua tentativa de entrar em Díli — na noite de 13 para 14 — , trazendo a reboque cerca de três centenas de indivíduos, acompanhados de mulheres e crianças. Em segundo lugar, a 15, uma sexta-feira, com a leviana atitude do cap. Lino da Silva, o qual, em Lospalos — quase no extremo leste da ilha —, por volta das 14 horas, mandara arrear a bandeira portuguesa e difundira um comunicado, proclamando que, a partir daquela hora e dia, a ‘Companhia de Caçadores 14’, de que ele era comandante, passava unicamente a ‘Companhia da UDT’, sendo destruído todo o material criptográfico e que o restante seria propriedade do povo de Timor. Seguidamente, tendo passado por Baucau, a caminho de Díli, com a sua desfalcada companhia, a que se haviam juntado alguns civis armados e militares da 2ª linha, vira aquela reforçada com a aderência (parece que forçada), da maior parte dos militares timorenses daquela guarnição. E a coluna ia a caminho do centro nevrálgico dos acontecimentos.
Tudo se ia conjugando para o confronto sangrento entre os dois… ‘galos’: de um lado, um razoavelmente equipado, comandado por dois europeus com experiência, só ‘aparentemente’ melhor treinado e organizado; do outro lado, um sem prática, temente, mas aguerrido e cheio de genica. Ambos exaltados, dominados pelo ódio, pelo cheirar do sangue,em posições que não entreviam ser de mútuo suicídio puro, que conduziria a um beco com improváveis saídas. Supervisionando, aparentemente indiferente, ou quiçá irresoluto, o árbitro omitia-se, abstinha-se, à espera de algo “do além”, como se não fora a sua equipa que levara os contendores para aquele desfecho, ou esta luta não lhe dissesse respeito.
Já, parece que naquele mesmo dia, a UDT faz uma manifestação, contra os comunistas, a qual, depois de percorrer várias ruas de Díli, atingiu o seu ponto alto na rua da Messe de Oficiais. Com cartazes ostentando ‘slogans’ contra aquela doutrina política, económica e social (marxista ou maoista ou…), a caravana, constituída pelas camionetas da empresa “Moniz da Maia”, — ‘nacionalizadas’ desde o primeiro dia da intentona e carregada de gente — era acompanhada por umas centenas de estupefactos nativos, na sua maior parte, sem dúvida, trabalhadores agrícolas recrutados nas ‘fazendas’ dos organizadores, que nada sabiam do que ali estariam a fazer, que não teriam a mínima ideia do que seria aquele temível comunismo, ansiosos por voltarem às suas palhotas, ao seu ‘fare nienti’ habitual, eles que, na sua maior parte, nem saberiam falar português e que só desejariam que os deixassem em paz, com a sua ‘masca’, os seus galos, o seu porco, os seus cabritos, a sua horta , a sua catana para todos os serviços e a sua eterna liberdade de contemplar o espaço, as montanhas a perder de vista, a não ter que contar o tempo, ouvir apenas narrar ancestrais lendas ou adorar os seus “lulics” (peitos em terra, mãos puxando raízes, vista lançada rés-monte. O céu em cima — Ruy Cinatti). A comandar toda esta tropa, à cabeça, solene, imponente, marcial, olhando altivamente em frente, fardado de camuflado, sentindo-se, indubitavelmente, um ser providencial, inspirado nalguma epopeia de revolução mexicana ou, mais provavelmente naquele que queria pôr grande parte dos portugueses no Campo Pequeno, arrogante no seu generalato, seguia o Comandante-chefe Operacional da UDT.
Não tenho ideia de ter visto, neste cortejo, como o alguém escreveu, denegrindo a imagem do comandante da polícia, que este fizesse parte do desfile. Penso, pelas palavras utilizadas por essa pessoa, que teria confundido com a cena, já descrita, no arrear da bandeira da Fretilin na casa do presidente daquele partido. E não imagino Maggiolo Gouveia a gritar impropérios contra os seus camaradas, na Mess de que ele também fazia parte.
Entretanto, se, por um lado, se continuava a ouvir as emissões da ‘pseudo democrática’ União (tão democrática que ameaçava ‘castigar’ todos os que não tivessem aderido à greve, por ela determinada, assim como requisitava, “à força”, combatentes para a sua tropa), emissões desgraçadamente repletas de revoltantes mentiras, de quem não queria ver os acontecimentos à luz da verdade, apregoando vitórias que não existiam e adesões em massa (ilusões), e, simultaneamente, prosseguiam na sua autoproclamação de campeões na luta contra o comunismo, em contrapartida, da parte do Governo, a partir do dia 13 e no “Faz Frio” (dependência climatizada anexa à Messe), haviam-se iniciado emissões utilizando o emissor oficial, o qual, embora menos potente que o do aeroporto, em poder dos revolucionários, nos ia acalmando com as suas notícias apaziguadoras, normalmente com trechos de música clássica e a voz serena, sem ódios, de um locutor que, segundo diziam, era a de um alferes que nunca se vira naqueles assados, mas que, possivelmente, teria descoberto a sua verdadeira vocação.

E vou procurar… CONTINUAR …