da minha janela – uma crónica no Diário dos Açores

da minha janela 2018-12-16

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O TEXTO ORIGINAL DE 2013

CRÓNICA 129, DA MINHA JANELA, 13 MAIO 2013

Das ameias do meu castelo, desta janela aberta sobre o mundo vi muita coisa e continuo a ver um planeta em permanente mudança. São os vaqueiros que passam a cavalo, em carroça ou em carrinha, rumo às suas vacas e aos depósitos de leite, logo pelas cinco e meia ou seis da manhã em rotinas que se repetem – duas ou três vezes ao longo do dia – até ao anoitecer quando regressam dos pastos pela última vez.

Vejo tratores mais apropriados ao celeiro do Oeste norte-americano, às pradarias, à amplidão dos campos australianos ou aos vastos terrenos da Extremadura espanhola do que ao minifúndio micaelense, depois há uns que são menos gigantescos, mas – mesmo assim – demasiado grandes para estas terras minúsculas, …, mas todos grandes, enormes para as pequenas parcelas de terra aqui na Lomba da Maia. Vejo as crianças barulhentas que voltam da escola primária ou da catequese, a correr, aos berros, à pancada umas com as outras, desobedecendo a mães e avós, a atirarem papéis para a rua, a comportarem-se como pequenas bestinhas que irão ser quando crescerem, saltando para o meio da rua impérvias ao trânsito e à vida que lhe podem roubar a cada momento.

Vejo anciãs de xaile ou lenço na cabeça lenta, mais parecem daguerreótipos do séc. XIX, enquanto vagarosamente sobem a rua rumo aos deveres eclesiásticos da fé, sejam missas, novenas, enterros ou procissões. Parecem viúvas a viver num mundo que já não existe e elas não compreendem a realidade em que estão inseridas… Imagens tiradas doutras eras falando de um passado ancestral imutável durante séculos e que ora deu um pulo para o espaço sideral. Vejo pela janela entreaberta da casa em frente, uma televisão sempre a debitar telenovelas e quejandos, entretendo os anos de vida que faltam à moradora citadina que aqui se desloca em feriados, férias e fins de semana…

Desta janela não vejo, na casa ao lado, o marido que bate na mulher, mas observo a mulher que bate nos filhos, (bem casada ou mal casada?) que não cessa de entrar e sair para falar com todos os homens da aldeia, mais os fornecedores do pão, da fruta, da carne, das roupas e todos os restantes fornecedores das carrinhas que aqui aportam diariamente para venderem os seus produtos. Ela aguarda, aperaltada, que o marido siga para as vacas e vai lampeira em busca de um homem que a ouça e à sua língua viperina, vivendo no quotidiano os sonhos imaginados das telenovelas que lhe enchem as noites. Há mais homens e mulheres assim, rua abaixo e em outras ruas, em freguesias perto e longe.

Da janela vejo aos domingos os homens com fatiotas melhoradas encostados à porta da Igreja ou a beberem uns copos na taberna mais próxima. São os mesmos que não entram na Igreja o ano todo, mas depois se fazem à estrada como romeiros, arrostando com frio, chuva e outras privações. Há ainda os que escapam sempre, sobre quem não impendem acusações de violência doméstica, de pedofilia, de abusos, de alcoolismo, mas que cumprem religiosamente tradições ancestrais que nem sabem explicar nem compreender.

Vejo enterros, procissões, casamentos, crismas e batismos (cada vez menos), vendedores (avulso) de cracas e lapas, vendedores de tudo e mais alguma coisa em carrinhas barulhentas na sua distribuição e aliciamento de clientes em tempo de crise. Vejo os montes ora verdes, ora verdes, ou, então verdes, consoante a estação do ano, e as culturas do que lá se planta, ora vazios, ora com vacas alpinistas todo o ano.

Mas o que nunca vi desta janela foi alguém a ler um livro…