Bárbaros, porcos e maus – João Pedro George – SÁBADO

Todas as épocas têm o seu Manuel Alegre, todos os períodos históricos dispõem da sua dose de infatigáveis defensores dos costumes antigos. – Opinião , Sábado.

Source: Bárbaros, porcos e maus – João Pedro George – SÁBADO

Limpar os dentes com a faca dos talheres, cuspir para cima da mesa, assoar-se à toalha com os dois dedos deixando o muco cair no chão e depois limpá-los à manga do casaco; sorver com a colher, fazer barulho a mastigar ou lamber os dedos quando estão gordurosos; descuidar-se e tirar porcaria do nariz quando se está a comer, diante de outras pessoas, ou remexer nas narinas e meter em seguida na boca o que se tirou de dentro delas.

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Só o ler estas imundícies choca -nos. Incomoda-nos. Causa -nos repugnância. Provoca -nos náuseas. São gestos rudes, pouco elegantes, qualificados como grosseiros, ou de labrego, que ultrapassam os limites do tolerável. No entanto, durante a Idade Média, na Europa, eram comportamentos normais da vida social e da convivência: assoar o nariz com a mesma mão com que se segurava a carne, cumprimentar alguém que estava a urinar ou a defecar no meio da rua, voltar a pôr na travessa comum um pedaço de comida que tinha estado na boca, escarafunchar os dentes à mesa, atingir alguém com saliva (ou algo mais purulento) porque se cuspiu para o lado, eram acções corriqueiras que não causavam, naquela época, tanto nojo ou aversão.

O mero facto de, hoje, ser embaraçoso falar destas coisas, ou sequer imaginá-las, significa que a pressão social, sobre as pessoas, para controlarem os seus instintos e impulsos aumentou substancialmente desde então, e implicou uma diminuição do limiar da nossa sensibilidade e da nossa repugnância perante tais indecências.

Uma parte dessa pressão foi imposta pelos manuais de etiqueta e boas maneiras, cuja publicação se foi progressivamente generalizando a partir do século XVI. Esses livros estabeleciam os preceitos considerados socialmente adequados em cada circunstância, as atitudes civilizadas, e impunham interdições relativas às péssimas maneiras, aos comportamentos incivilizados, impróprios ou bárbaros. E eram também férteis em requintes de humor: “Não é coisa que se faça, depois de teres limpado o nariz, desdobrares o lenço e ficares a espreitar para dentro dele, como se te pudessem ter escorregado da cabeça pérolas e rubis.”

Sobre os traques, cujo som fazia as delícias de Mozart (que até lhes dedicou algumas peças de música), algumas destas obras comprovam que a literatura de há 400 ou 500 anos, quando é boa, deve continuar a ser lida e transmitida às novas gerações: “Há quem recomende que se deve reter os gases, comprimindo o ventre. Mas não é curial contrair uma doença pretendendo parecer-se urbano. Se for possível à pessoa retirar-se, faça -se isso estando-se só. Se não, proceda -se de acordo com o vetustíssimo provérbio: dissimule-se o ruído com uma tossidela. Segui a regra de Chiliades: tosse conforme o traque.”

A repetida e pormenorizada referência a estas interdições sugere-nos que estes costumes estavam amplamente disseminados, quer nas classes opulentas, quer nas desvalidas. Muitos deles mostram-nos quão estranhas se nos tornaram algumas atitudes dos nossos antepassados e quão afastados nos sentimos deles: “Não é um hábito delicado que, ao deparar-se-lhe algo de abjecto na rua, como às vezes acontece, a pessoa se vire imediatamente para o companheiro e lhe chame a atenção para isso.

Muito menos decente ainda é dar ao outro a cheirar a coisa fétida, como alguns costumam fazer, e insistir, erguendo aquela coisa nauseabunda até às narinas dos outros, e dizer: ‘Gostava de saber até que ponto é que isso fede’, quando seria melhor aconselhar: ‘Como fede, não cheires.’”

Não foram só as fronteiras da vergonha e do pudor que avançaram e conduziram a um refinamento dos padrões sociais de conduta. Também a sensibilidade relativa à agressividade e à violência física aumentou; ou, se quiserem, diminuiu a tendência para as pessoas obterem prazer ou gozo envolvendo-se em actos de pancadaria, ou testemunhando -os (por exemplo, nas execuções públicas das penas de morte, por enforcamento, guilhotina, garrote, etc.).

Até na ocupação dos tempos livres, com a passagem de muitas formas populares de luta ao estatuto de desportos, através de uma maior regulamentação, ou mesmo na política, através da obediência a uma série de formalidades e de códigos legais, é patente esse declínio na capacidade de se sentir prazer golpeando fisicamente os outros, partindo-lhes as costelas e a cabeça com a fúria dos pontapés, os esmurrando-os até os deixar com a cara deformada e coberta de sangue.

O râguebi moderno, quando comparado com os seus antecessores medievais, que eram de uma brutalidade indescritível – por exemplo, era permitido utilizar mocas, bastões e botas com biqueiras dotadas de pontas de ferro para atingir os jogadores das equipas contrárias –, é um desporto altamente civilizado. O mesmo se pode dizer em relação ao futebol, com a aplicação progressiva de sanções aos que violam as regras (faltas, grandes penalidades, expulsões, períodos de suspensão, multas em dinheiro ou erradicação), ou no boxe, com a introdução de luvas (e o seu posterior acolchoamento), de boqueiras e de capacetes, ou a criação de várias categorias de jogadores, consoante o peso, para garantir uma maior igualdade de oportunidades.

No desporto, em geral, a sensação de prazer passou a resultar menos da violência ou da imposição de sofrimentos físicos nos adversários, e mais da habilidade e da técnica dos desportistas, ou das combinações entre os elementos de cada equipa. Na política ocorreu o mesmo processo, pois a capacidade de dominar os adversários através da violência física e militar foi substituída, nos regimes parlamentares, pelo compromisso e pela negociação pacífica, onde as técnicas verbais do debate, como a argumentação, a retórica, a persuasão ou a habilidade para camuflar as intenções, são fundamentais (e onde a confiança e a garantia de que quem está no governo não será vingativo, não utilizará o poder para ameaçar, perseguir, aprisionar, torturar ou matar os adversários, são absolutamente imprescindíveis).

Tudo isto vem a propósito de Manuel Alegre e da sua definição da tourada (à semelhança, imagino, das lutas de galos e de cães, dos combates de ursos, da queima de gatos vivos em cestos, das lagostas suadas ou até de certas praxes académicas) como “uma tradição cultural e social que é parte integrante da nossa civilização”.

Que o autor de Trova do Vento Que Passa considere as práticas e os valores ou normas de comportamento associados às tradições como imutáveis e eternos, e não padrões que se transformam e evoluem; que uma das figuras gradas do Partido Socialista olhe para a província como um conjunto de comunidades paradas ou estagnadas no tempo, como se elas não experimentassem também transformações de costumes e hábitos; e que, na sua opinião, infligir sofrimento nos animais de forma intencional e como fonte de prazer e excitação, fazendo disso um espectáculo, é um comportamento moralmente aceitável e tolerável, não deveria causar-nos estranheza.

Afinal, todas as épocas têm o seu Manuel Alegre, todos os períodos históricos dispõem da sua dose de infatigáveis defensores dos costumes antigos, desde peidar-se ruidosamente nos cafés e nos restaurantes a mostrar o pénis erecto a uma mulher indefesa ou de condição profissional e económica inferior, passando por aplicar descargas eléctricas nos testículos dos adversários políticos, até ficarem do tamanho de abóboras, ou queimar o pénis dos detidos com pontas de cigarro, como se faz em alguns regimes “politicamente incorrectos”.

É que, segundo a lógica tremenda de Manuel Alegre, onde alhos são confundidos com bugalhos, como se tudo fosse um tecido homogéneo, quem critica tais práticas e as considera não uma questão de gosto, mas de mudança de sensibilidades e de luta contra a barbárie, está a cometer um atentado às liberdades pessoais e a encorajar o temível politicamente correcto.

Pior, está a contribuir para o enfraquecimento da democracia e é co -responsável pelo grotesco autoritarismo de um Bolsonaro. Na verdade, se aos aficionados da tauromaquia não causa vergonha o facto de obterem abertamente prazer com o sofrimento e o derramamento de sangue dos touros (e de alguns cavalos), por que razão é que nos deveríamos sentir incomodados quando sabemos que um indivíduo, para manter a sua felicidade doméstica, teve de assentar dois murros na pinha da esposa ou da namorada?

Porque é que haveria de causar-nos embaraço saber que uma respeitável soma de mulheres sofreu abusos e humilhações sexuais às mãos dos superiores hierárquicos, ou quando utilizamos palavras que humilham e ofendem as minorias que, historicamente, eram destituídas de direitos e foram oprimidas e alvo de terríveis injustiças, e com elas fazemos piadas para que os de sempre – os heterossexuais e os brancos – continuem a rir-se dos gays, dos travestis e dos negros?

Não adianta iludir: com a carta aberta que escreveu ao primeiro-ministro, Manuel Alegre endereçou à posteridade um documento da perversão moral daqueles que continuam a fazer do sofrimento alheio um espectáculo para seu próprio gáudio. Bem podem limpar as mãos à parede!


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