A meio caminho entre a Europa e a América, o que é isso de literatura açoriana? – Vida – SAPO 24

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A meio caminho entre a Europa e a América, o que é isso de literatura açoriana?

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Pode ser tudo, mas também pode não ser nada. Entre um lado e o outro do Atlântico, os Açores são um arquipélago em diálogos sucessivos. Procurar dizer em caixinhas estanques o que é isso de ser escritor açoriano pode ser arriscado. Nuno Costa Santos, curador do ciclo Arquipélago de Escritores, Pedro Mexia e Onésimo Teotónio Almeida procuram caminhos para a eventual resposta.
A meio caminho entre a Europa e a América, o que é isso de literatura açoriana?
Cartaz do ciclo “Arquipélago de Escritores”, no centro de Ponta Delgada, no dia 15 de novembro de 2018. PEDRO SOARES BOTELHO/MADREMEDIA

Descendo a rua, o vasto mar. O sol entra pela janela grande, ao mesmo tempo que a habitual música ascética de uma sala de espera vai tocando, quando os sopros violentos do aspirador não a calam. Estamos em Ponta Delgada, num hotel à beira da marina. De um lado da mesa, Pedro Mexia, escritor, comentador e conselheiro de Marcelo Rebelo de Sousa. Em frente, Nuno Costa Santos, autor, escritor e curador do ciclo ‘Arquipélago de Escritores’, que até domingo discute literaturas na cidade açoriana.

Para mote, Saramago, que não era ilhéu de nascença, mas que numa ilha se exilou. No ‘Conto da Ilha Desconhecida’, o Nobel ribatejano escreve que “é preciso sair da ilha para ver a ilha”, como quem diz que há que olhar de fora para perceber o que está dentro. A proposta de São Miguel, porém, parece oposta: pegar em duas dezenas de autores e pô-los no meio do Atlântico a falar de literatura.

Saindo da ilha, será possível notar uma literatura visivelmente açoriana? Questão sensível. “muito debatida por uma geração em encontros sucessivos”, diz Nuno Costa Santos. Geração que inclui Emanuel Félix, Emanuel Jorge Botelho, que vai ser homenageado, José Martins Garcia, Vamberto Freitas, Urbano Betencourt, Carlos Wallenstein, Eduíno de Jesus e Onésimo Teotónio Almeida.

“Se queres que eu te responda de forma categórica, a minha posição será a de um meio termo: percebo essa tentativa de realizar a teorização à volta deste tema — e a questão estava muito fundamentada nas temáticas especificamente insulares: o mar, a instabilidade meteorológica, o vulcanismo, a baleação, no caso do Pico e do Faial”, continua Nuno Costa Santos. Porém, “hoje há uma pluralidade de vozes e muitas delas não têm esta temática, sobretudo as novas gerações. Portanto, num território literário plural, não se pode dizer que essa característica seja a única que faz parte da escrita açoriana”.

“Gosto da expressão escrita açoriana, mais do que literatura açoriana, — a literatura de um escritor caracteriza-se essencialmente pelo estilo. As temáticas são as essenciais e são diversas, outras vezes, mas o estilo de cada um é que define se a pessoa escreve literariamente ou não. Cada escritor terá o seu estilo, mesmo aqui [nos Açores]”, remata o curador do ciclo ‘Arquipélago de Escritores’.

Onésimo Teotónio Pereira, micaelense nos Estados Unidos, junta-se à conversa em modo diferido, já à noite, no Arquivo Regional. Responde depois de uma mesa sobre a obsessão da portugalidade (título, aliás, de um seu livro, que deu o mote à para primeira conversa do evento).

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“Todos os escritores são diferentes e os escritores açorianos, um número acentuado deles, tem algumas marcas que refletem algumas coisas açorianas”, diz Onésimo. “Alguma problemática açoriana, algumas marcas da cultura açoriana, da maneira de ser açoriana — mas isto não são todos, não faz o grupo ser diferente”, continua. “Mas quando a gente olha para eles no seu conjunto, notamos que há umas tonalidades, mais aqui, mais acolá, mais longe nuns do que noutros e mais num livro do que noutro, mas só se pode olhar para isso em conjunto”.

“(…) o que nunca se pode fazer, a propósito de qualquer país e de qualquer grupo, é dizer ‘este grupo é assim, aquele grupo é assado'”- Onésimo Teotónio Pereira

“Tudo isto é muito vago e difuso. Nalguns casos são os temas, nalguns o vocabulário, noutros uma tonalidade, noutros casos são as personagens que refletem uma determinada psicologia que é mais açoriana — mas não são todos. Só mesmo em conjunto se pode perceber isso”, sublinha.

“A mesma coisa acontece com a literatura portuguesa: em conjunto, a gente olha e acaba por ter umas marcas, algumas tonalidades que fazem com que se possa dizer que a literatura tem algumas características que são diferentes da espanhola — agora, o que nunca se pode fazer, a propósito de qualquer país e de qualquer grupo, é dizer ‘este grupo é assim, aquele grupo é assado'”.

Pedro Mexia não se mete — “Se essa matéria é controversa entre os escritores açorianos, muito menos alguém do continente iria opinar sobre isso.” —, mas abre o jogo: “mesmo em Portugal continental, faz algum sentido falar, por exemplo, dos escritores entre Douro e Minho, porque há uma tradição camiliana, porque há uma literatura do Norte de Portugal, onde está o Pascoaes e a Agustina”, diz.

E posto desta forma, “faz sentido porque há um enraizamento geográfico e o país nas suas várias regiões, quer no continente, quer nas ilhas, tem características próprias: nalguns sítios a religião é muito forte, noutros sítios as lutas sociais são muito intensas”.

“Não creio que numa espécie de prova cega, como se faz nos vinhos, se possa saber de onde uma pessoa é por causa do seu estilo”- Pedro Mexia

“Não creio que numa espécie de prova cega, como se faz nos vinhos, se possa saber de onde uma pessoa é por causa do seu estilo — a não ser, evidentemente, com o uso de regionalismos ou de palavras locais”, continua Mexia.

“No caso dos Açores há de facto uma diferença: justamente por não haver contiguidade territorial, existe uma noção que transcende a literatura de que é uma coisa um bocadinho diferente, uma realidade um bocadinho diferente da realidade continental e, portanto, essa ideia de açorianidade não faz sentido transposta para uma região de Portugal continental — uma pessoa pode dizer que é beirã, mas isso não quer dizer grande coisa; pode querer dizer uns certos hábitos, uma certa linguagem, mas Portugal tem uma unidade territorial antiga e mais ou menos inquestionável e, portanto, dizer que se é da região A ou B pode fazer algum sentido, mas…”

Todavia, nos Açores, “como de outra forma na Madeira, a questão tem um peso histórico-político com outra densidade. É muito diferente dizer que se é beirão ou que se é açoriano…” “Não há pulsões independentistas no território continental. O Algarve não quer ser independente — embora já seja, mais ou menos, fala-se outra língua e tudo”.

As regiões autónomas não são comparáveis com “as regiões do continente e isso eu percebo e transcende a literatura, é anterior. Não sei se é mais importante que a literatura, mas está noutro patamar identitário e político”, explica Mexia.

Onésimo propõe o exercício: “Se ler vinte romances açorianos e vinte romances portugueses, percebe. Há tonalidades que são mais para aqui ou mais para ali. Os jornalistas gostam que a gente diga que isto é branco ou é preto — não, isto é tudo muito mais cinzento; mais cinzento esbranqueado; ou mais cinzento escuro.”

Perto ou longe. A que distância estão as ilhas?

Pegando num mapa, os Açores estão a meio caminho entre a Europa e a América. Ainda estão longe do continente?

“O longe já não é o que era”, conta Pedro Mexia. Primeiro, “evidentemente já é mais fácil chegar aos sítios, como, sobretudo, porque — e na vida literária até mais do que nas outras realidades culturais isso é muito flagrante — já não existe muito a chamada vida de tertúlia, uma vida literária que se manifestou durante décadas em Portugal e em todo o lado, com encontros em cafés e livrarias”.

O resultado foi “uma desterritorialização e uma fragmentação” das discussões, diz Mexia. “Uma pessoa pode fazer parte da discussão literária e do contacto com os outros autores em blogues, nas redes sociais, etc. Hoje em dia há muitas pessoas que fazem a sua vida literária ‘online’”.

“Isso muda o jogo. Claro que é muito diferente, é muito diferente para pior, acho eu. [Emmanuel] Levinas, um filósofo, dizia que é muito difícil odiar alguém quando vemos a cara da pessoa. Não é que não faltassem ódios quando as pessoas estavam umas com as outras, mas é diferente; apesar de tudo, o contacto pessoal e o contacto impessoal não são da mesma natureza. No caso da literatura, que é desterritorializado, isso não faz muita diferença”.

“Os festivais acabaram por substituir essa espécie de sociabilidade regular, que passa a ser uma sociabilidade sazonal”. “As pessoas já não vão às livrarias, já não frequentam os cafés, já não há tertúlias — mas, há aqui uma maneira de os escritores se encontrarem, de se encontrarem com os leitores, de criar, apesar de tudo, uma comunidade com um mínimo de realidade física”.

Fazer uma discussão destas em São Miguel só é diferente porque não é óbvio, defende Pedro Mexia: “É menos óbvio para um escritor que viva em Lisboa ou no Porto, vir aos Açores em vez de ir a Braga ou a Coimbra. Tirando essa diferença, que apesar de tudo é uma diferença significativa, não há diferença. É uma parte de Portugal onde há leitores que acompanham a literatura portuguesa. Mesmo estando longe, não estamos em Macau. Não acho que seja hoje uma fronteira intransponível.”

Nuno Costa Santos confirma: “Não houve renitência de nenhum autor; às vezes há dificuldades de agenda — como haveria para outros encontros. A dificuldade é coordenar as agendas com as disponibilidades de ocorrência dos próprios festivais”, conta.

“É um bocadinho difícil por causa deste lado, mas acho que as pessoas gostam de vir aos Açores e acho que é um território em si bastante literário”, diz Nuno, enquanto Pedro vai acenando que sim.

“A livraria Solmar, durante anos, foi trazendo muitos escritores cá, sempre favoreceu esta ideia de escritores continentais virem cá — e até estrangeiros, entre eles o Enrique Vila-Matas este aí, criou amizade com os autores”.

“Aqui sempre se valorizou muito a literatura Aquela ideia de séculos de isolamento criou também a necessidade de as pessoas se exprimirem, no caso literariamente — e não estou só a falar de autores publicados em editoras locais com um certa dimensão ou nacionais; tenho em casa muitas edições de autor de poetas que viveram nos anos 1940, 50, 60 cá e que eu acho extraordinário. Para mim é precioso. Esses autores também devem ser acarinhados.”

“É preciso estarmos à altura também do que foi feito antes e não cair na tentação de não fazer nada. Como o Pedro disse, há aqui uma identidade própria, que foi assinalada pelo Vitorino Nemésio, com o termo “açorianidade”, que foi um termo criado de uma forma mais ou menos intuitiva, como eram muitas coisas em Vitorino Nemésio, nas que caracteriza muito um sentimento que existe, de forma diversa, porque as ilhas são diferentes de umas para as outras, aqui nos Açores”.

A primeira edição do “Arquipélago de Escritores” arrancou esta quinta-feira e prolonga-se até domingo, com a participação de duas dezenas de autores e uma homenagem ao poeta Emanuel Jorge Botelho.

David Machado, Gonçalves M. Tavares, Isabel Lucas, João de Melo, João Tordo, Joel Neto, Leonor Sampaio da Silva, Onésimo Teotónio Almeida, Pedro Mexia, Sandro William Junqueira, Urbano Bettencourt, Vamberto Freitas e Vasco Rosa são alguns dos autores portugueses anunciados, a par da brasileira Lélia Nunes e dos premiados norte-americanos Anthony Marra, Diana Marcum e Nathan Hill.

Organizado pela Câmara Municipal de Ponta Delgada, o evento tem produção da agência literária StorySpell, contando com o apoio da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento e do Governo dos Açores, através da Secretaria Regional da Educação e Cultura

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