sexo – Quem usa cuecas fio dental não precisa de dar consentimento

Opinião de Paula Cosme Pinto

Source: Expresso | Quem usa cuecas fio dental não precisa de dar consentimento

Quem usa cuecas fio dental não precisa de dar consentimento

12.11.2018 às 14h24

Vamos lá ver se percebi: o facto de eu gostar de usar cueca fio dental com renda significa que saio de casa todos os dias com o intuito de ter encontros sexuais? E que isto é sinal automático de consentimento? Basicamente, foi o que se defendeu num tribunal irlandês durante o julgamento de um caso de violação. E, sem surpresas, o argumento teve efeito na decisão do júri.

Num caso em que “era a palavra de um contra o outro” (como disse a advogada de defesa), o homem foi ilibado das acusações. E os argumentos usados em tribunal para descredibilizar a jovem de 17 anos que alegava ter sido violada por um homem de 27 chocou boa parte dos irlandeses, relançando a discussão pública em torno da chamada justiça machista. Trocado por miúdos, uma justiça que continua a desconfiar das vítimas de abuso sexual como ponto de partida, sendo altamente permeável a juízos de valor sobre mesma. Escusado será dizer, juízos de valor com base sexista e carregados de estereótipos de género, incluindo sobre o que é correto ou não as pessoas do sexo feminino vestirem e o que essa escolha significa na sua interação com os demais. Pelos vistos, as cuecas que uma mulher ou uma adolescente usa podem significar diretamente que tem interesse sexual por alguém e, é claro, que dão consentimento automático para contacto íntimo.

No mesmo julgamento, outro dos argumentos usados foi o facto de a vítima não ter chorado em nenhum dos momentos, o que supostamente também é sinal de que a interação com o homem em causa não estava a ser contra a sua vontade.

É como aquele caso em que a rapariga foi questionada em pleno tribunal sobre porque “não fechou as pernas com firmeza”, ou como o outro em que como a mulher ficou inerte, em estado de choque, quando era violada à vez por um grupo de cinco homens nas festa de San Fermín, na realidade se calhar estava era a gostar. Ou até mesmo como o recente caso do Porto, em que como a vítima tinha dançado sensualmente com um dos agressores numa discoteca, na realidade a agressão não era assim tão grave, tendo sido depois violada numa casa de banho, quando estava totalmente inconsciente por consumo excessivo de álcool.

É muito interessante – que é como quem diz agonizante – ver como as formas de descrédito das vítimas de assédio e de abuso sexual recaem invariavelmente em construções básicas e totalmente enraizadas sobre os papéis e comportamentos tipo de cada género na sociedade. E o da mulher é muito claro: se não quer ser violada, então não se ponha a jeito. Porque uma mulher “como deve ser” é recatada, elegante e não usa roupa provocadora – tangas de renda pelos vistos são um convite direto, sem direito a passar pela casa de partida, a do consentimento. Uma mulher “às direitas” não anda em grandes cowboyadas à noite, não anda sozinha “a más horas” e, é claro, que não flirta com desconhecidos. Mulheres “de respeito” não têm consumos excessivos de álcool, nem têm vidas sexuais com diferentes parceiros, isto do sexo só mesmo dentro de relações amorosas.

Caso uma agressão sexual aconteça, também há comportamentos durante e depois do próprio ato que tornam a situação mais ou menos grave, ou até mesmo legítima do ponto de vista do agressor. Ou a vítima mostra um comportamento descontrolado antes e após a agressão, ou então não é assim tão vítima. Ou a vítima resiste com tudo o que tem, grita, chora e esperneia, ou então se calhar até estava a gostar. Ou a vítima fica com grandes marcas físicas resultantes da agressão, ou então a violação nem foi assim tão grave quanto isso. Ou a vítima faz queixa automaticamente após o ato, ou então se calhar estava era com dúvidas. Mas se a primeira coisa que faz é ir à polícia, então o mais certo é estar a mentir porque obviamente ninguém tem essa clareza e frieza de espírito após uma situação traumática. Vítima que é vítima ainda vai chorar para debaixo do duche, como se vê nos filmes, mesmo que isso possa estranhar em grande parte das provas.

Conseguem perceber a bola de neve de predisposições para a incredulidade com que se abordam as vítimas deste tipo de crime? Não admira que ele seja tão recorrente e que o sentimento de impunidade, e consequente legitimidade, continue a ser tão grande.