Sistelo, o sonho rural em risco de se tornar pesadelo

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Aldeia de Sistelo, um paraíso rural em risco de se tornar (verdadeiro) pesadelo?

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Em Portugal

Este monumento nacional, enquanto paisagem cultural evolutiva viva, experiência dias agitados…

“NÃO!”, atiram-me, quase que em uníssono, quando lhes peço autorização para os retratar em foto. Atrativa por ser uma imagem rural, das que recordam parte da minha infância nos avós transmontanos. Maria, Paula, Ernesto e José estão entre os 270 habitantes do Sistelo (mais de 70% da população tem mais de 60 anos e há apenas três crianças) e fazem parte dos que começam a ficar fartos do excesso de turismo do que alguém designou de ‘pequeno Tibete português’ (ahhhh… como muito se inventa no nosso país), devido aos seus socalcos, nos limites do Parque Nacional da Peneda-Gerês.

O telemóvel repousará, obediente a tão vigoroso desejo. Porém, ao contrário do que será habitual, o meu interesse nos meus interlocutores persiste. Tal com o diálogo. Não tarda, somos convidados a juntar-nos.

Uma malga de fresco tinto, “daquelas videiras ali”, como me indica José, é a melhor introdução para a conversa. Animada. Diversificada. Interessada. De nós para iguais. O convite surge, amiúde, a outros visitantes, mas parece que ninguém tem vontade de se misturar. Mais perdem.

“O nosso sossego acabou. Semana, fim de semana ou feriado é igual: isto está sempre cheio de turistas. Não voltaremos a ter a nossa vida pacata”, lamenta-se Ernesto. Teresa, à distância, de enxada na mão, vai amanhando a terra e, com a cabeça, vai corroborando as palavras do amigo.

Maria vai mais longe e insurge-se contra os “porcos” que deixam lixo onde não devem: “De uma aldeia permanentemente limpa passamos a recolher demasiada tralha. Então garrafas de plástico e pacotes de iogurte…”. Os olhos não conseguem esconder o desalento. O mesmo que abraça os meus novos quatro ‘amigos’.

Sistelo, povoado que foi classificado como monumento nacional, enquanto paisagem cultural evolutiva viva, experiência dias agitados, até pelos quilómetros de passadiços da Ecovia do Vez. Pena rimar, mas, aqui, terminou a pacatez.

Quem chega ao Sistelo, Arcos de Valdevez, Alto Minho, logo se deparada com longa fila de carros, nem por isso bem estacionados, que vai marcando a vista. Avançando para o centro da pequena povoação, centenas de turistas em grande azáfama e a socializar com níveis de decibéis que o povoado nunca experienciou. Dói de assistir…

A Tasquinha é que não se queixa. Três funcionários sem tempo para respirar. Entre sopas, sandwiches, bolinhos de bacalhau e bifanas. Sorte a nossa que decidimos almoçar e às 11:00 e já confortamos – e de que maneira – o estômago. Pelas 16:00, quando regressaremos do primeiro trilho, o cenário é quase pornográfico de tanta gente. E não são apenas portugueses e espanhóis…

O aviso chega em forma de orgulho: “Em maio já vamos ter o restaurante a funcionar. O Cantinho do Abade, com os melhores pratos da região. Principalmente a nossa cachena com arroz de feijão da terra”. Amélia amplia a sua tasquinha e o padre Bruno, feliz da vida por começar a ter mais gente nas suas missas, autoriza a instalação de um restaurante na residência paroquial. Sem dúvida, o descontrolado afluxo de turismo será verdadeiro milagre para alguns…

Escolherei dois percursos. Começando pelo PR 14 – Trilho das Brandas de Sistelo, que nos seus íngremes 8.550 metros nos levará os bofes a subir, e testará a resistência das articulações, ao descer. O grau de dificuldade é tido como médio e são necessárias seis horas. Nas fraldas da Serra da Peneda, a caminhada principia junto a um curioso edifício vulgarmente designado por Castelo de Sistelo, residência do que foi o único Visconde de Sistelo, um comerciante local que fez fortuna no Brasil.

Daqui desceremos, a pique, até ao rio, mas depois serão horas de encantadoras subidas perdendo-nos entre rústico casario e os típicos espigueiros. Seguindo um longo e serpenteante carreteiro. Quanto mais nos aproximamos do céu, melhor vemos Sistelo. E penso o quão honrado estará o Tibete com as comparações a este belo cenário.

No lugar de Padrão também são avessos a fotos, mas o coração grande é o mesmo. Somos desafiados a ajudar na labuta do campo, neste caso uma tarefa comunitária. Toda a aldeia se junta e vão trabalhando, à vez, os campos de cada um. Uma rotina imutável. Que nem respeita o 1.º de Maio, dia do trabalhador.

No cimo do lugarejo há quem já se tenha fartado de caminhar e siga pela estrada, aliviando o esforço. Neste caso, somos persistentes. Avançaremos para a zona mais difícil do trilho, também a mais recompensadora, em termos paisagísticos. Um pouco por todo o percurso, o gado anda à solta pelos montes e não raras vezes costuma ‘passear’ pelas estradas, até aqui com escasso trânsito.

Veremos casas abandonadas e outras recuperadas. Cenários de vivo amarelo das maias que afastam o ‘mafarrico’ e que estão, verdadeiramente, em todas as casas da região. Surpreender-nos-emos com dois grupos de garranos, tão selvagens quanto o panorama. E avançaremos por um bosque que tem tudo para ser encantado. No fim deste, a recompensa de começar a longaaaaaaa… descida. Com telas sublimes para o nosso olhar.

Felizmente, nesta zona mais exigente ao esforço físico, não encontramos vestígios de lixo que vão sendo habituais nas zonas mais baixas, nomeadamente plásticos. Aqui sentimo-nos em verdadeira comunhão com a montanha, até porque são poucos os que se aventuram por estas bandas.

Nos Arcos de Valdevez há 17 caminhos sinalizados e identificados. Ávidos de mais banho de natureza, e depois de terminarmos o desafio inaugural, ousamos fazer mais dois quilómetros, fazendo o PR 25 – Trilho dos Passadiços. Um registo completamente diferente, acompanhando o rio, igualmente estimulante. Com mais matéria humana.

A Casa do Castelo está a ser transformada em centro interpretativo da paisagem cultural, para acolher os turistas e os ‘guiar’ para os vários recantos deste idílico lugar. Um velho moinho está a ser recuperado. Alojamento local é que está ainda em fase primitiva de oferta, pois não abunda. A anormal quantidade de casas a serem reabilitadas na parte alta da povoação indicia que tudo está a mudar…

O balir e o mugir são os sons que aqui me trazem, mas o roncar dos motores ameaça abafá-los. Se este ‘sucesso’ servir para dar uma oportunidade e fixar os mais novos, excelente! Se proporcionar melhor qualidade de vida a todos os outros, fantástico! Mas já vi demasiado Mundo para saber que há muitas receitas de progresso que correm (mesmo muito) mal.

Que esta violação de pacatez seja feita – pelos locais e visitantes – com pleno respeito pelas tradições. Pelo preservar do autêntico. Pelo que é da terra: natural e cultural. Sem desvirtuosas descaracterizações. Está em causa a destruição de riquezas singulares, únicas. Sonho com uma evolução sustentável, de qualidade. Crescer com sentido. Para que o Sistelo não seja mais um paraíso subitamente tornado em pesadelo…

Rui Barbosa Batista