vindimas de há sessenta anos.

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AS VINDIMAS

Texto de Manuel Azevedo

Se quase todos tinham adegas, possuiam, também, vinhas, maiores ou menores, que davam para fazer vinho para todo o ano e para a matança. Se era pouco, condutava-se, o mesmo é dizer: bebia-se menos. Não interessava, mas sim a folia pegada que se fazia. Folia não queria dizer que não houvesse trabalho que a apanha da uva sempre traz. Esse labor começava com o lavar dos cestos no porto da Prainha, o tal que fica na melhor baía do Pico. Era melhor ali porque, assim, se obviava a falta de água doce que atinge o Pico, cronicamente. É uma tradicional ilha seca. Lavar as barricas para pôr o vinho e lavar outros utensílios que se usavam naquela faina, era imperioso para que tudo estivesse preparado, a tempo. As barricas não só eram lavadas, mas também desinfetadas com uma mecha de enxofre. Estavam, assim, preparadas para receber o vinho e a saúde dos consumidores precavida. Preparadas, preparadas, não: havia que acautelar qualquer derrame, por isso se retocavam os arcos com a raiva e o martelo para que o vinho não caísse no chão, todo coberto com rama de pinheiro, renovada a cada ano. Por esse retoque passavam, também, os balseiros, toneis e “adornas” e outros. De vez em quando, tinha-se de fazer vasilhame novo e entrava em ação o tanoeiro.
Depois desta preparação, vinham, então, as vindimas. Festa e mais festa, apesar do trabalho que o mês de setembro, ainda quente provoca nas pessoas que, mesmo com chapéu de palha, ficavam todas suadas. Em direção ao Caminho do Meio, desciam todos da freguesia para, em clima bom, fazerem as vindimas que duravam um bom par de semanas, pois a uva não amadurecia toda ao mesmo tempo: aquela que ficava mais perto do mar amadurecia mais depressa. E alguns tinham vinhas mais para cima, até em cima de maroiços. Isto é que se chamava aproveitar o espaço.
Meu pai também tinha muitas e grandes vinhas daí que, para além dos costumeiros, fossem muitos e muitas para ajudar (as mulheres também iam e trabalhavam como homens), alguns para pagar favores.
Depois de tudo isto, ala para as vinhas! Agachados, junto às videiras grupos de pessoas deitavam os cachos em cestos de asa que, de quando em vez, depois de cheios, eram despejados em cestos maiores feitos na vertical, ao contrário de outros, em alguns lugares, que eram feitos na horizontal, de modo que podiam ser transportados à cabeça, protegida com rodilhas para não dar cabo do casco. Às vezes, os bagos verdes eram enviados aos outros. Alguns davam o cavaco e outros não se importavam, levando o gesto na brincadeira. Todo o dia a vindimar, só com a interrupção para almoço que, as mais das vezes, era feito à sombra duma parede. E toca a vindimar! De vez em quando, descansava-se, aproveitando os fumadores para matarem o vício. Ao fim da tarde, era preciso acarretar os cestos para a adega, porque não havia carros, nem sequer caminhos. Tinha de ser às costas. “Acaculados” os cestos grandes deviam ser muito pesados. Desta tarefa se encarregavam os mais fortes. Quantas vezes, bebido um trago e um fôlego de água, voltavam à vinha a buscar mais um. De equilíbrio se precisava. É que aqueles pesados, aliviados com um bordão que debaixo do cesto vinha até ao braço para segurança. O outro braço ajustava-se à borda do cesto. Era mesmo precisa muita segurança porque aquela gente caminhava por um chão coberto de “borgalhau”. Como passavam grandes portais? Nunca se ouviu dizer que alguém tivesse caído. Chegados, tomavam outro trago e bebiam mais um fôlego de água, tirada do tanque, ali ao lado, num balde de zinco donde bebiam todos. E a sede era muita! Não podia ser só vinho, pois havia mais cestos para transportar. Ala para a vinha! Ao fim da tarde, quando toda a uva tinha sido acarretada, os homens dedicavam-se a esbagoar os cachos e as mulheres iam para a cozinha ajudar minha mãe e minha irmã a prepararem a ceia. Depois de esbagoado em moinho próprio, o mosto era aparado em celhas que eram despejadas nos depósitos ou nos balseiros ou nos toneis, ficando para ali, uns dias a fermentar, embora tivesse de ser remexido, frequentemente. E fazia-se isto, vezes sem conta, até acabar.
Terminado aquele trabalho, era tempo de cear. A mesa já estava posta com as batatas brancas quentes e o bolo de milho para comer com caldo de peixe de bicuda ou um molho fervido com veja escalada ou um molho cru com enxaréu ou, ainda, molho fervido com outro peixe qualquer que as cachorras (bonitos) bastavam ser fritas que era bem bom. Tudo era regado e bem com um delicioso vinho.
Larga para casa que, amanhã, havia mais.
Estas as vindimas de há sessenta anos.
O Pico sempre foi terra de vinhateiros. E continua!