o haiti não é aqui crónica de 2010

1. CRÓNICA 80 – DO HAITI A VIRIATO E SERTÓRIO – 22 janº 2010

80.1. HAITI

Há dias ouvi a frase bíblica “Porque muitos são chamados, mas poucos escolhidos” [Mt 22: 14] e perguntei-me por que os cidadãos do Haiti têm sido chamados tantas vezes. Agora com os terramotos que devastaram a metade da ilha interrogo-me sobre a história do país.

Haiti, em português, oficialmente Repiblik Ayiti, uma parte da ilha de Hispaniola, nas Grandes Antilhas, que partilha com a República Dominicana. Ayiti (“terra de altas montanhas”) era o nome indígena dado pelos nativos taínos.

Em francês o país é “A Pérola das Antilhas”, pela sua beleza natural. O ponto mais alto é Pic la Selle, 2 680 m. É o terceiro maior país do Caribe (depois de Cuba e da República Dominicana), com 27 750 km2, 10,4 milhões de habitantes, um milhão na capital, Porto Príncipe.

A posição histórica e etnolinguística do Haiti, são únicas. Quando conquistou a independência em 1804, e se tornou a primeira nação independente da América Latina, foi o único país do mundo resultante de uma revolta de escravos bem-sucedida e a segunda república da América.

É o mais pobre da América. A Revolução durou quase uma década; todos os primeiros líderes do governo foram antigos escravos.

Em fevereiro 2004, um golpe de Estado forçou a renúncia e o exílio do Presidente Jean-Bertrand Aristide. Um governo provisório assumiu o controlo sob a Missão da ONU. Michel Martelly, atual Presidente, foi eleito nas eleições gerais de 2010.

80.2. OS PECADOS DO HAITI

Li este artigo e gostei “Os pecados do Haiti”, 15 janeiro 2010 por Eduardo Galeano[1]

Em 1803, os negros do Haiti causaram tremenda derrota às tropas de Napoleão Bonaparte e a Europa não perdoou a humilhação infligida à raça branca. O Haiti foi o primeiro país livre das Américas. Então, começou o bloqueio e a nação recém-nascida foi condenada à solidão. Ninguém comprava, ninguém lhe vendia, ninguém a reconhecia. Nem mesmo Simão Bolívar, quando já havia derrotado a Espanha, graças ao apoio do Haiti que lhe tinha entregue sete navios, muitas armas e soldados, com a única condição que Bolívar libertasse os escravos.

Os EUA reconheceram o Haiti sessenta anos depois do final da guerra de independência, enquanto Etienne Serres, um génio francês da anatomia, descobria que os negros são primitivos porque “possuem pouca distância entre o umbigo e o pénis”.

A Europa havia imposto ao Haiti a obrigação de pagar à França uma indemnização gigantesca, como modo de perdoar o delito da dignidade. A história do assédio contra o Haiti, que em nossos dias tem dimensões de tragédia, é também una história do racismo na civilização ocidental. Os EUA invadiram em 1915 e governaram até 1934.

Retiraram-se quando alcançaram os objetivos: cobrar as dívidas do City Bank e revogar o artigo que proibia a venda de terras aos estrangeiros. Um dos responsáveis pela invasão, elaborou: “… é um povo inferior, incapaz de conservar a civilização que os franceses deixaram”.

O Haiti havia sido a pérola da coroa, Montesquieu havia explicado: “O açúcar seria demasiado caro se não trabalhassem os escravos, que são negros desde os pés até a cabeça e têm o nariz tão achatado, que é quase impossível ter deles alguma pena. Resulta impensável que Deus, que é um ser muito sábio, tenha posto uma alma boa num corpo inteiramente negro”. Em troca, Deus havia colocado um chicote na mão do feitor. Karl von Linneo, havia retratado o negro com precisão científica: “Vagabundo, desocupado, negligente, indolente e de costumes dissolutos”.

A democracia haitiana recém-nascida, na festa de 1991, foi assassinada pelo golpe de estado do general Raul Cedras. Três anos mais tarde, ressuscitou.

Depois de terem colocado e retirado ditadores militares, os EUA depuseram o Presidente Jean-Bertrand Aristide, eleito por voto popular, o primeiro em toda a história e que teve a louca aspiração de querer um país menos injusto.

Aristide regressou acorrentado para retomar o governo, mas proibiram-no de exercer o poder. O sucessor, René Préval, obteve 90% dos votos, mas qualquer burocrata do FMI ou do Banco Mundial tinha mais poder.

80.3. DERRUBAR GOVERNOS NO HAITI[2]

Os EUA, o Canadá e a França, conspiraram abertamente durante quatro anos para derrubar o governo eleito do Haiti cortando toda a ajuda internacional ao país com o objetivo de destruir a economia e torná-lo ingovernável.

A política dos EUA também ajudou a destruir a agricultura haitiana, ao forçar a importação de arroz americano subsidiado e eliminar milhares de plantadores haitianos. Para os que se indagam por que não existem instituições haitianas para ajudar com os socorros e ajuda às vítimas do terremoto, essa é uma das razões.

Ou o porquê de haver 3 milhões de pessoas amontoadas na área atingida. Antes do terremoto, a situação do Haiti era comparável à de muitos sem-abrigo nas ruas de grandes cidades dos EUA: pobres demais e negros demais para terem os mesmos direitos.

Em 2002, um golpe militar com o apoio dos EUA, afastou o governo eleito da Venezuela, mas a maioria dos governos no hemisfério reagiu rapidamente e ajudou a forçar o retorno do governo democrático. Dois anos depois quando o Presidente haitiano democraticamente eleito, Jean-Bertrand Aristide, foi sequestrado pelos EUA e levado para o exílio na África, a reação foi fraca.

Após dois séculos de saque e pilhagem do Haiti desde a fundação na revolta de escravos em 1804, da ocupação brutal por fuzileiros navais dos EUA e das incontáveis atrocidades cometidas sob ditaduras, auxiliadas e apoiadas por Washington, o golpe de 2004 não pode ser relegado ao esquecimento.

Como cantou em tempos Caetano Veloso, “O Haiti não é aqui”.

[1] http://culturadetravesseiro.blogspot.pt/2010/01/os-pecados-do-haiti-eduardo-galeano.html

[2] Folha de S. Paulo 19/01/2010, adaptado de um artigo de Mark Weisbrot, doutor em economia pela Universidade de Michigan, é Codiretor do Centro de Pesquisas Económicas e Políticas, em Washington (www.cepr.net ).