A VIAGEM AO JAPÃO DA NAU DO TRATO DE 1609

Source: CONTOS & HISTÓRIAS: A VIAGEM AO JAPÃO DA NAU DO TRATO DE 1609

Sunday, July 8, 2018

A VIAGEM AO JAPÃO DA NAU DO TRATO DE 1609

O barco negro, fundeado ao largo de Macau, que estava sob o comando do Capitão-Mor André Pessoa, mostrava intensa actividade.
Nos dois anos precedentes não tinha havido viagem para o Japão e urgia que o carregamento do navio pudesse compensar as ausências dos anos anteriores.
Tinha chegado palavra de Malaca de que os holandeses espreitavam a hora de assaltar a grande carraca, a Nau do Trato, como também ficou conhecida.
Ciente de que já um navio negro tinha sido capturado pelos holandeses, em 1603, e face às informações recebidas, André Pessoa resolveu antecipar a largada da Nau do Trato, chamada de “Nossa Senhora da Graça”, para os princípios de Maio. O capitão-geral aproveitou a primeira monção e partiu mais cedo, antecipando-se aos holandeses que se tinham emboscado no estreito da Formosa.
Cauteloso, André Pessoa escapou à armadilha, chegando a Nagasaki em finais de Junho.
Os navios holandeses chegam tardiamente ao Japão e ficam em Hirado.
Problemas no Japão
Chegado a Nagasaki, o bagyo (magistrado) Hasegawa Fujihiro, ao contrário do que era habitual, criou problemas a André Pessoa, exigindo a inspecção do navio ao que Pessoa se opôs terminantemente. Quer Hasegawa quer ainda o daikan (oficial de Justiça) Murayama mostraram um certo grau de inimizade pouco habitual, tendo Hasegawa comprado abusivamente, em nome do shogun (regente do império) Tokugawa Ieyasu, toda a seda de melhor qualidade a preços mais baixos.
O seu comportamento pode ter sido motivado pela inveja devido à influência que o padre jesuíta João Rodrigues gozava junto do shogun ou, nunca se sabia, poderia ser um reflexo da crescente impaciência de Tokugawa Ieyasu para com os portugueses. Os dois japoneses queixaram-se ao shogun da insolência portuguesa, acusando-os malévolamente de esconder a melhor seda para vender no mercado negro por preços mais altos.
Tokugawa Yeiasu
Sugeriram mesmo que, se o shogun adoptasse uma linha mais dura contra os portugueses, os navios de selo vermelho poderiam compensar algumas das perdas potenciais do comércio com os portugueses. Confrontado com o estabelecimento holandês de comércio em Hirado, Pessoa viu-se forçado a reconciliar-se com Hasegawa e Murayama através da intercessão dos jesuítas e de um suborno monetário.
Quando Pessoa explicou a Hasegawa a sua versão dos acontecimentos no incidente de Macau sugerindo que enviasse a declaração a Tokugawa Ieyasu, Hasegawa aconselhou Pessoa a não fazer nada do género. Hasegawa explicou que, embora Ieyasu estivesse ciente dos comportamentos truculentos dos japoneses no exterior, seria forçado a tomar como exemplo o lado de seus compatriotas se o assunto fosse levantado oficialmente.
Pessoa não estava totalmente convencido com este argumento, e elaborou um memorando não oficial do caso português para Honda Masazumi, o encarregado das relações exteriores do shogun, para desagrado de Hasegawa e Murayama que, com má consciência, suspeitaram que Pessoa também se tinha queixado dos dois.
Em qualquer caso, a Honda Masazumi, com autorização de Ieyasu, deu ao enviado de Pessoa garantias escritas de que os marinheiros japoneses seriam proibidos de viajar para Macau, e qualquer um que fizesse isso poderia ser tratado de acordo com as leis portuguesas.
Exteriormente, Hasegawa ainda tinha em mente os interesses portugueses, pois era de seu interesse manter o comércio português vivo em Nagasaki. Providenciou para que os enviados portugueses chegassem à corte de Ieyasu antes do grupo de comércio holandês, mesmo que o shogun escolhesse conceder uma audiência aos enviados holandeses primeiro. A entrada em cena dos holandeses deu a Ieyasu a oportunidade de romper o monopólio português sobre a seda chinesa, e o regente deu permissão aos holandeses para estabelecer um posto comercial em qualquer lugar do Japão sem a restrição de preços como os portugueses. Hasegawa aparentemente tomou o lado Português e retransmitiu informações de actividades holandesas para o Português, no entanto, Pessoa e os comerciantes macaenses ainda estavam desconfiados das intenções de Hasegawa e resolveram fazer uma petição a Ieyasu diretamente para reclamar sobre Hasegawa e Murayama. Os jesuítas ficaram horrorizados quando descobriram a decisão de Pessoa devido ao seu conhecimento de que a irmã de Hasegawa, Onatsu era a concubina favorita de Ieyasu, “tanto que se ela dissesse que o preto era branco, Ieyasu acreditaria” Os padres usaram todos os tipos de retórica que puderam reunir, incluindo a ameaça de excomunhão, para dissuadir Pessoa de apresentar a queixa. Pessoa desistiu, mas o estrago já havia sido feito, pois o intérprete japonês contratado para traduzir a lista de queixas mostrara isso ao próprio bagyo. Hasegawa, numa grande fúria, jurou acabar com Pessoa vivo ou morto.
Em Setembro de 1609, os sobreviventes japoneses do caso de Macau de 1608 haviam voltado para contar sua versão dos factos ao seu senhor Arima Harunobu, e a notícia chegou a Ieyasu. O shogun repreendeu Hasegawa por tentar esconder o assunto e ordenou que este fizesse uma investigação completa.
Hasegawa elaborou um longo relatório ao lado de Arima, que queria vingar-se dos seus homens, dizendo que os depoimentos de Macau tinham sido obtidos pelos portugueses sob pressão e que deveriam ser considerados nulos. Tanto Hasegawa como Arima defenderam a tomada forçada da “Nossa Senhora da Graça” e sua carga, porém o shogun hesitou neste ponto, uma vez que tal medida poderia colocar em perigo o comércio anual de Nagasaki-Macau.
O impulso final de que Ieyasu precisava surgiu inesperadamente, quando um navio espanhol partindo de Manila para o México afundou na costa leste do Japão no mesmo mês. Quando Ieyasu recebeu os sobreviventes espanhóis na sua corte, perguntou ao seu capitão, Rodrigo de Vivero y Aberrucia, o recém-substituído governador das Filipinas, se os espanhóis poderiam fornecer a maior parte das importações de seda para o Japão como os portugueses. Aberrucia respondeu com rapidez que eles poderiam facilmente enviar três navios ao Japão por ano. Ieyasu, agora convencido de que poderia substituir os mercadores portugueses pelos espanhóis, holandeses e pelos seus próprios navios de selo vermelho, ordenou que Hasegawa e Arima prendessem Pessoa a todo custo.
Baía de Nagasaki 1610
Através da comunidade cristã no Japão, Pessoa foi informado das intrigas contra ele e prontamente preparou-se para a defesa e partida da sua carraca. Mandou preparar uma grande quantidade de granadas de mão e munições a bordo do navio, mas devido ao enorme tamanho da carga, o navio não estaria pronto para navegar até o Ano Novo em 1610, enquanto os navios macaenses anteriormente retornavam antes do Natal. Enquanto o navio estava a ser carregado, Arima Harunobu tentou convencer Pessoa a ir à praia com ofertas de hospitalidade, dizendo que ele havia sido enviado a Nagasaki apenas para negociar os preços da seda, e que os altos funcionários do shogunato só queriam que Pessoa desse a conta a pagar. No tocante aos acontecimentos de Macau, como estrangeiro seria perdoado, mesmo se considerado culpado. Muitos portugueses acreditavam em Arima, mas não Pessoa, que sabia que Arima havia reunido uma força de 1200 samurai contra ele. Pessoa agora não iria a terra nem mesmo para a missa, e ordenou que sua tripulação subisse a bordo da embarcação para zarpar. No entanto o barco negro viu a partida adiada porque alguns tripulantes acreditavam que a crise actual era apenas a disputa pessoal de Pessoa e demoravam deliberadamente, enquanto a maioria dos que queriam embarcar foi obstruída por guardas japoneses.
No momento em que Arima Harunobu atacou a carraca, em 3 de Janeiro, apenas cerca de 50 portugueses estavam a bordo com alguns escravos negros.
Antes de atacarem, Arima, Hasegawa e Murayama enviaram em conjunto uma mensagem aos jesuítas, justificando o ataque iminente à carraca com o facto de Pessoa estar a tentar escapar à justiça japonesa, acrescentando que, se a tripulação portuguesa desistisse de seu capitão, o assunto seria resolvido. Os jesuítas responderam que não era da cultura portuguesa entregar os seus capitães.
À noite, a armada de juncos de Arima, cheia de gritos, aproximou-se da “Nossa Senhora da Graça”, que estava apagada e silenciosa. Alguns dos oficiais de Pessoa queriam disparar para a multidão, tendo acendido os pavios que traziam para os bacamartes, mas Pessoa recusou-se a assumir a responsabilidade de abrir as hostilidades, e assim os procedimentos de zarpar e levantar âncora continuaram em silêncio na escuridão. Os japoneses atiraram primeiro, disparando por duas vezes tiros de mosquetes e flechas, ao que então, André Pessoa respondeu com duas saraivadas sucessivas dos dois lados do navio. A flotilha japonesa recuou para a noite quando o barco português ancorou em Fukahori por falta de vento.
Hasegawa assumiu a batalha como perdida e enviou um mensageiro para o shogunato levando a notícia. Ieyasu recebeu a notícia com grande ira e ordenou que todos os portugueses em Nagasaki fossem executados, incluíndo missionários jesuítas. Esta ordem nunca foi porém levada a cabo, porque o mensageiro retornou a Nagasaki para encontrar a situação muito alterada.
Batalhas Nocturnas
A batalha continuou com pequenas variações para as duas noites seguintes, já que os japoneses aparentemente não ousavam atacar durante o dia. Além de repetir as manobras da primeira noite, Arima tentou vários métodos diferentes para subjugar o navio.
Primeiramemente tentou enviar dois samurai disfarçados para embarcar no navio e matar Pessoa no convés, mas o estratagema falhou, pois os dois não foram autorizados a entrar no navio. Enviou então mergulhadores para cortar os cabos da âncora do navio, mas isso também não teve sucesso. Na terceira noite, Arima enviou uma flotilha de jangadas incendiárias, mas sem efeitio.
Durante o terceiro dia, Arima enviou uma mensagem a Pessoa dizendo que desejava renovar as negociações sobre os preços da seda, e estava disposto a enviar reféns a bordo para provar sua sinceridade, desde que a carraca permanecesse onde estava. Pessoa, em troca, exigiu que os filhos de ambos, Arima Harunobu e Murayama Toan, fossem os reféns e ele fosse autorizado a levar o navio para o ancoradouro vizinho de Fukuda, onde poderia esperar ventos favoráveis para voltar a Macau. Arima não deu resposta, mas Hasegawa ficou furioso quando soube da troca, dizendo a Pessoa numa mensagem que Arima não tinha autoridade para fazer tal proposta e, pelo contrário, tinha ordens directas para matar Pessoa. Hasegawa acrescentou que se Pessoa se rendesse e deixasse a carga ser vendida a um preço decidido pelos japoneses, poderia interceder em nome de Pessoa. O capitão-geral recusou novas negociações enquanto os japoneses continuassem as hostilidades.
A noite final
Na manhã de 6 de Janeiro de 1610, uma brisa favorável tornou possível para Pessoa mover o seu navio para uma enseada próxima a Fukuda. Vendo que sua presa estava prestes a fugir, Arima embarcou numa flotilha liderada por uma enorme torre-de-assalto. Esse dispositivo foi construído pela junção de dois grandes barcos, sobre os quais foi erigida uma torre de madeira tão alta quanto o convés da carraca. A torre estava coberta de peles molhadas para protegê-la contra o fogo português e tinha aberturas para os 500 arqueiros e mosqueteiros no interior para disparar. Com um total de cerca de 3000 samurai, reforços nos últimos três dias a flotilha tentou aproximar-se da carraca sob a cobertura da torre-de-assalto.
Entre as 8 e as 9 horas da noite, a flotilha aproximou-se da popa da carraca, onde apenas um dos canhões amovíveis poderia ser usado para afastar o ataque, já que o outro havia sido transferido para a proa para proteger os cabos do navio.
Um samurai cristão liderou a investida, dizendo aos samurai cristãos que estavam junto a si que se o navio português não fosse destruído ou capturado, o shogun voltaria a sua ira para a comunidade cristã e as igrejas seriam destruídas. Nesse ataque, alguns japoneses conseguiram subir ao navio, mas foram imediatamente derrubados (o próprio Pessoa aparentemente matou dois) ou foram forçados a lançar-se ao mar.
Os portugueses foram capazes de afastar as pequenas embarcações com granadas de mão, mas estas fizeram pouco efeito sobre a torre flutuante, que se acoplou o convés da popa. Até então, as baixas portuguesas eram poucas, apenas quatro ou cinco portugueses, juntamente com alguns escravos africanos, enquanto os japoneses mortos eram estimados em várias centenas. No entanto, seis horas após o confronto, um tiro da torre-de-assalto atingiu um pote de piche em chamas que um soldado português estava prestes a lançar. Isso iniciou um incêndio que se espalhou pelo convés e colocou uma das velas em chamas. Pessoa e seus homens recuaram para o castelo da proa, onde perceberam que não tinham homens suficientes para combater simultâneamente o fogo e as hostes japonesas.
Nessa altura, decididamente, Pessoa ordenou que o paiol do navio fosse incendiado, já que ele preferiria morrer do que render-se. Perante a hesitação do comissário da carraca, Pessoa murmurou uma oração e deu ordem aos seus homens que se salvassem, enquanto corria para o paiol.
A “Nossa Senhora da Graça” explodiu duas vezes, dividiu-se em duas e afundou-se com carga e tripulação. Os japoneses mataram tudo o que puderam ver nadando na água, mas alguns sobreviventes conseguiram chegar à costa em segurança. O corpo de André Pessoa, no entanto, nunca foi encontrado.
O final
Os restantes mercadores e missionários portugueses ficaram extremamente preocupados com os seus destinos, especialmente porque Ieyasu ordenara pessoalmente a sua execução. Arima Harunobu, também ele cristão, lamentou o que havia feito e intercedeu em favor dos jesuítas. O próprio shogun mudou de opinião, já que estava convencido de que o comércio exterior cessaria sem os missionários. Eventualmente, os comerciantes foram autorizados a regressar a Macau com os seus bens, enquanto os missionários foram autorizados a ficar.
Uma vez que a cidade de Macau dependia muito do comércio do Japão, o Senado de Macau decidiu que era prudente enviar um representante ao Japão para negociar oficialmente a retoma do comércio. Eles não puderam enviar um navio para o Japão até o verão de 1611, quando uma embaixada liderada por D. Nuno Soutomaior chegou à corte de Ieyasu em Agosto. O shogun estava muito desiludido com as suas expectativas anteriores de substituir os comerciantes portugueses pelos holandeses e espanhóis, uma vez que os holandeses não puderam entrar em 1610, pois quer holandeses quer espanhóis estavam envolvidos na guerra dos oitenta anos, entre si. Além disso, contrariamente às garantias prévias de Hasegawa a Ieyasu, as importações de seda dos navios de selo vermelho não podiam ser comparadas com as do “grande navio de comércio”, uma vez que os portugueses gozavam de um acesso directo quase exclusivo ao mercado de seda de Cantão devido às suas relações com os chineses. Ambos os lados estavam ansiosos para retomar o comércio anual do Japão. A culpa pelo incidente de Nossa Senhora da Graça foi colocada sobre o falecido André Pessoa por se recusar a render-se quando solicitado, e Ieyasu deu permissão para que o “grande navio” viesse a Nagasaki como dantes. Depois de outra viagem à corte de Ieyasu em 1612 para esclarecer os termos de troca, o “São Felipe e Santiago” tornou-se a primeira carraca portuguesa a fazer negócio em Nagasaki após um hiato de dois anos.
Extraído de C.R. Boxer
The Christian Century in Japan: 1549–1650