CRISTÓVÃO DE AGUIAR, HOMENAGEM A MIGUEL TORGA E PAULO QUINTELA 2009

  1. CRÓNICA 75 – DA HOMENAGEM A PAULO QUINTELA E MIGUEL TORGA A CRISTÓVÃO DE AGUIAR – set 2009
    75.1. CRISTÓVÃO DE AGUIAR HOMENAGEIA PAULO QUINTELA E MIGUEL TORGA

Decorreu entre 30 de setembro e 3 de outubro o 8º colóquio anual da lusofonia (12º colóquio organizado pelos COLÓQUIOS DA LUSOFONIA) cujo tema principal era a memória contra o esquecimento. Presentes os Professores Doutores João Malaca Casteleiro (Academia de Ciências de Lisboa), Evanildo Bechara (Acade-mia Brasileira de Letras) ambos Patronos dos Colóquios desde 2007, Adriano Moreira (Vice-Presidente, Aca-demia das Ciências de Lisboa), o escritor convidado, Cristóvão de Aguiar e Ângelo Cristóvão (Academia Ga-lega da Língua Portuguesa). O convidado especial, o escritor açoriano CRISTÓVÃO DE AGUIAR prestou a sua HOMENAGEM CONTRA O ESQUECIMENTO a Miguel Torga e Paulo Quintela, enquanto outros homenagea-ram Carolina Michaëlis, Leite de Vasconcellos, Euclides da Cunha, Agostinho da Silva, Rosalía de Castro, Jo-sé Rodrigues Miguéis, etc. Ainda em debate estava a aplicação do 2º Protocolo Modificativo do Acordo Orto-gráfico; Literatura e Açorianidade e a Tradução de obras lusófonas. Teve igualmente lugar uma sessão espe-cial sobre literatura (de matriz açoriana) e tradução de autores lusófonos com a participação de Cristóvão Aguiar, Rosário Girão, Zélia Borges, Ilyana Chalakova e Chrys Chrystello. Este colóquio contou com a presen-ça de 45 oradores dos seguintes países e regiões: Portugal, Brasil, Galiza, Açores, Bélgica, Macau R P China, Espanha, Bulgária, Ucrânia, Roménia e Nigéria, tendo-se assistido ao lançamento de livros, uma mostra de obras açorianas, recitais de música açoriana, música galega, duas representações teatrais de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil e poesia (galega, portuguesa e brasileira). Para os mais de trinta mil habitantes de Bragança que faltaram a estas sessões resolvemos trazer aqui à colação alguns dos textos mais marcantes destas sessões. Assim, nas próximas linhas teremos a apresentação do consagrado escritor açoriano CRIS-TÓVÃO DE AGUIAR relativa a Paulo Quintela e Miguel Torga com quem privou ao longo da sua vida literária de 45 anos, seguindo-se depois a Homenagem que os Colóquios prestaram ao autor convidado deste ano, e noutra Crónica posterior, as apresentações críticas dos livros que este ano tiveram o seu lançamento ou revisi-tação no colóquio de Bragança.


75.1. DOIS HOMENS DE TRÁS-OS-MON¬TES por Cristóvão de Aguiar

Aqui, na cidade de Bragança, coração de Trás-os-Montes, grave delito seria não recordar dois grandes vultos da cul¬tura portu¬guesa do século XX, Paulo Quintela e Miguel Torga.
Outros há que realçar como o Abade de Baçal, historiador, etnógrafo, arqueó¬logo, autor das Memó¬rias Arqueológico-Históricas do Dis¬trito de Bra¬gança, cujo V volume é o célebre livro, Os Judeus no Dis¬trito de Bra-gança…E João Araújo Correia, médico na cidade da Régua e um dos grandes Mestres da Língua Por¬tuguesa, que mere¬ceu de Aquilino, outro brilhante cultor da Língua, estas expressivas e legítimas pala¬vras: «Mestre de nós todos há cin¬quenta anos a lavrar nesta terra ingrata e ímproba seara branca do papel almaço, e somos ve-lhos, glo¬riosos ou ingloriosos, pouco importa; mestre dos que vieram no inter¬mezzo da arte literária com três dimensões para a arte literária sem gramática, sem sin¬taxe, sem bom senso, sem pés nem cabeça; e mestre para aqueles que terão de libertar-se da acrobacia insusten¬tá¬vel e quei¬ram construir obra séria e dura¬doura». Isto só para mencionar os que desapareceram.
Sem desprimor para os dois vultos transmontanos atrás mencionados, e que de per si mereciam uma confe¬rên¬cia inteira, ou mais, só irei debruçar-me, e espero não me despe¬nhar da altura a que ambos se guin-daram, sobre a obra e personali¬dade de outras duas individualida¬des trans¬montanas, mais che¬ga¬das à minha afeição, com quem durante anos convivi em Coimbra e de quem recebi gran¬des lições de vida, cultura, huma-nidade e humanidades: Paulo Quin¬tela, filho desta cidade, onde nas¬ceu em 1905, e Miguel Torga, natu¬ral de São Marti¬nho de Anta, o seu lugar de onde e o seu centro do mundo, como tan¬tas vezes escre¬veu nos seus li-vros…
Paulo Quintela foi um germanista de renome internacional e um dos melho¬res tra¬dutores das línguas germânicas para a Língua Por¬tuguesa.
Dir-se-ia, sem pingo de exagero, que naciona¬lizou esses poetas e escritores estrangeiros, prin¬ci-palmente ale¬mães, para a Literatura Portuguesa, dela ficando a fazer parte: Rilke, Hölderlin, Goethe, Nie-tzsche, Hauptmann, Nelly Sachs e tantos outros, incluindo muitos poemas ingleses de Fernando Pessoa, a pedido de Georg Rudolf Lindt, crítico alemão, lusita¬nista, estu¬dioso e tra¬dutor de Pessoa. E foram esses poetas maiores da Literatura Universal, sobre¬tudo Rilke, que influenciaram alguns poe¬tas portugueses, dos quais destaco Eugénio de Andrade e o próprio Miguel Torga.
Como se isto não bas¬tasse, Paulo Quintela, um apaixo¬nado pelo teatro e por Gil Vicente, havia de res-sus¬citar a sua obra dramatúrgica para as tábuas do palco, até então sepultada na poeira dos com¬pêndios. Ex-cetuavam-se algu¬mas tími¬das, fugazes e nem sempre logradas ten¬tati¬vas do Teatro Nacional Dona Maria, que, nos meados dos anos trinta do século XX, o pôs em cena. E terá sido um espetáculo, com excertos da obra de Mestre Gil, uma silva vicentina, repre¬sentado por essa companhia, em uma noite de verão, no Pátio da Uni-versi¬dade de Coimbra, que o catapultou para pôr de imediato a obra vicentina em cima do palco.
Escreveu ensaios sobre a obra do maior homem de teatro português, e deu a conhecer aos leitores por-tugueses as Líricas Castelha¬nas, de Gil Vicente, publi¬cadas em livro, em mea¬dos dos anos ses¬senta, no Can-cioneiro Vér¬tice.
Porém, Quintela não se quedou por Gil Vicente: encenou outros gran¬des drama¬turgos; os trá¬gicos gre-gos: a Medeia, de Eurípedes; a Antí¬gona, de Sófo¬cles; o Prometeu Agrilhoado, de Ésquilo; O Grande Teatro do Mundo, de Calderón de La Barca; Retablillo de don Cris¬tó¬bal e A Sapa¬teira Prodigiosa, de Frederico Gar¬cía Lorca.
Nesta última peça, foi o próprio Quin¬tela quem represen¬tou o papel de sapa¬teiro, o principal, porque o ator que o devia interpre¬tar ter comu¬ni¬cado, na véspera da estreia, que não podia com¬parecer – valia Quin¬tela saber de cor todos os papéis das peças que encenava; O Tar¬tufo, de Molière, além de alguns portugueses contemporâ¬neos, como Miguel Torga; José Régio e Raul Brandão…
Graças ao TEUC (Tea¬tro dos Estudantes da Uni¬versidade de Coim¬bra), fundado em 1938, e que se es-treou com a Farsa de Inês Pereira, foi possí¬vel a Paulo Quintela, seu diretor artís¬tico durante mais de trinta anos, dar a conhecer não só Gil Vicente como todos os dramaturgos atrás referi¬dos, fazendo do TEUC uma verdadeira escola de teatro por onde pas¬saram gerações e gerações de estudantes, que, após a forma¬tura, conti¬nuaram a lição do Mestre, organizando grupos de teatro nas locais onde foram exercer a sua profissão.
Como dizia, foi nesta cidade de Bragança que nasceu, em dezembro de 1905, Paulo Manuel, oitavo rebento de uma prole de dez, sendo o pai pedreiro e a mãe padeira. Aqui se criou, iniciou e con¬cluiu os estu-dos elemen¬tares e liceais, que o haviam de guindar à Faculdade de Letras da Universi¬dade de Coimbra, onde se matriculou no ano letivo de 1922 /1923, ainda com a idade de dezasseis anos.
Aluno bri¬lhante, con¬cluiu o curso de Filologia Germânica com distinção, e foi bolseiro da Fundação Humboldt, o que lhe proporcionou viver, estudar e ensi¬nar, em Berlim, durante seis anos.
Com a subida de Hitler ao poder, regressou a Coimbra e à sua Faculdade, passando a exercer, durante mais de qua¬renta anos, o magis¬té¬rio nas Literatu¬ras e Cul¬turas Ger¬mâ¬nicas.
Aqui jaz, no cemitério do “Alto do Sapato”, desde o dia 10 de março de 1987.
Delito grave seria também deixar em silêncio o nome de Miguel Torga, um dos mais grados escritores de sempre da Lite¬ratura Portu¬guesa e, durante grande parte do per¬curso da existência, íntimo amigo de Paulo Quintela e seu companheiro de lides e aventu¬ras literárias.
Procu¬rarei, nesta minha despretensiosa comunicação, deslindar o que os uniu e depois os separou para sempre, tentando o mila¬gre, sempre pos¬sível, de um reatamento de relações post mortem…
Entre ambos existia uma ami¬zade enrai¬zada num ace¬rado amor que consagravam a Trás-os-Montes, o «Reino Maravi¬lhoso», de onde ambos eram oriundos. «Que belo é ter um amigo! Ontem eram ideias contra ideias. Hoje é este fra¬terno abraço a afir¬mar que acima das ideias estão os homens. Um sol tépido a ilumi¬nar a paisa¬gem de paz onde esse abraço se deu, forte e repou¬sado. Que belo e natu¬ral é ter um amigo!» ─ escre¬veu Torga, no dia 4 de fevereiro de 1935, no pri¬meiro volume do Diá¬rio, referindo-se a Quintela, que conhecera um ano antes na cama de um hospital em Coimbra.
No Segundo Con¬gresso Trans¬mon¬tano, reali¬zado nas Pedras Salgadas, em setembro de 1941, ambos parti¬ci¬param com duas confe¬rências.
A de Miguel Torga intitulava-se «Um Reino Maravilhoso (Trás-os-Montes)»; a de Paulo Quin¬tela, «Um Poeta de Trás-os-Montes», Miguel Torga. E era o Poeta: «Vê-se pri¬meiro um mar de pedras. Vagas e vagas si-dera¬das, hir¬tas e hos¬tis, conti¬das na sua força des¬me¬dida pela mão inexorá¬vel dum Deus cria¬dor e dominador. Tudo parado e mudo. Ape¬nas se move e se faz ouvir o cora¬ção no peito, inquieto, a anun¬ciar o começo duma grande hora. De repente rasga a crosta do silêncio uma voz de franqueza desem¬ba¬inhada: «─ Para cá do Ma-rão, man¬dam o que cá estão!» Sente-se um cala¬frio. A vista alarga-se de ânsia e de assom¬bro. Que penedo fa-lou? Que terror res¬peitoso se apo¬dera de nós? Mas de nada vale interro¬gar o grande oceano megalí¬tico, por-que o nume invisível ordena: ─ Entre! ─ A gente entra, e já está no Reino Mara¬vilhoso.»
Por seu turno, Paulo Quintela: «Mas não se nasce impune¬mente em Trás-os-Montes, no Alentejo ou à beira-mar. Quer dizer que a paisa¬gem, se não é o único fator determi¬nante, é con¬tudo primor¬dial ele¬mento de forma¬ção e informação. Se a poe¬sia é no fundo expres¬são ─ expres¬são mágica ─ das coi¬sas e dos seres, da Vida, é evi¬dente que essa expres¬são há de ser em certa medida condi¬cio¬nada pela maneira como esses seres e coi¬sas se nos reve¬lam e nos soli¬ci¬tam, pela luz que os banha, pelo hori¬zonte em que estão implanta¬dos, pelo ângulo por que se con¬tem¬plam.
O homem da planí¬cie terá uma vivência das coi¬sas e dos homens muito diversa da do monta¬nhês. Hori-zontes vastos e planos, monó¬tonos, em que as figuras se per¬dem ou ficam reduzi¬das a con¬tor¬nos impreci¬sos, convi¬dam a erguer os olhos e a contemplar o céu.
Daqui ─ falo, evi¬dente¬mente, em termos amplos que admi¬tem toda a sorte de exceção que não aba¬lará aliás a fir¬meza do prin¬cípio ─ (o próprio poeta de que me ocupo poderá por vezes pare¬cer exceção…) ─ daqui, digo, a pro¬pen¬são contem¬plativa e a necessi¬dade de fuga e liberta¬ção mís¬tica do homem nado e criado em ambiente des¬tes.
Daqui o caráter mís¬tico da grande litera¬tura da estepe russa, por exem¬plo.
Mas suba¬mos agora uma monta¬nha. As coisas na encosta que vamos esca¬lando são-nos mais chega-das, mais íntimas, mais nos¬sas, pelo esforço que puse¬mos em alcançá-las; a luz quebra e reflete de outra ma-neira nas lom¬bas que nos rodeiam e nos limi¬tam o hori¬zonte; a subida é árdua, mas gostosa; o arca¬boiço arfa, bate o cora¬ção encos¬tado à fraga ou à árvore, e o arquejar do peito e a pan¬cada do cora¬ção do homem da mon¬tanha faz-se hálito e pul¬sar da pró¬pria terra-mãe.
Chega-se ao cimo. Mas não foi para con¬tem¬plar o céu que nos apro¬ximámos dele. Sobe-se a um monte para olhar cá para baixo, para dominar a terra que se alarga, se nos revela e nos con¬vida.
Foi no alto dum monte que o diabo patenteou a Cristo a sua maior tenta¬ção: «De novo subiu o diabo a um monte muito alto: e lhe mos¬trou todos os Reinos do Mundo, e a gló¬ria deles, e lhe disse: Tudo isto te darei, se pros¬trado me adora¬res…» Deus em Cristo resis¬tiu à tenta¬ção.
Os homens sucumbem à vee¬mên¬cia do desejo de posse do Mundo e da sua Beleza. Miguel Torga é, dos poe¬tas portu¬gueses moder¬nos, o que está mais in¬tima¬mente ligado à sua paisagem, que é a pai¬sa¬gem de Trás-os-Montes.»
Convoco agora o Poeta Manuel Alegre para, com a sua palavra poé¬tica, vir em meu auxílio. Na III Parte do seu livro, Coimbra Nunca Vista, inti¬tu¬lada «Abe¬cedá¬rio de Coimbra», o poeta de abril, grande amigo e ad-mirador de ambos, em¬preende uma apolí¬nea pere¬gri¬nação afetiva através de individua¬lidades que, em dado mo¬mento histó¬rico-cultu¬ral, cunharam o caráter da cidade mítica. Nesse «Abecedário», figuram, entre outros, dois poemas dedicados às duas fragas graníticas transmontanas, um com o título de «Miguel Torga No Largo da Porta¬gem»; o outro intitulado «Paulo Quin¬tela». O dedicado ao autor de A Criação do Mundo do reza assim:
Todos os dias o poeta vem ao centro / sobe ao seu consul¬tório e embarca para / dentro. / Diante da folha branca vai de viagem / navega sobre o tempo e nunca para / Há nele o canto de raiz e o verso vagabundo / da sua janela chega à outra margem / e dá a volta ao mundo / no Largo da Portagem.
Sobre Quintela escreve:
Nada sabía¬mos da lín¬gua por¬tuguesa / e então sílaba a sílaba ele ensinou-nos / a música secreta das vogais / a cor das con¬soan¬tes a ondulação o ritmo / o maru¬lhar das frases e o seu / sabor a sal. / E tam¬bém como pisar um palco / como falar como calar e sobre¬tudo / como sair de cena e entrar / no grande teatro deste / mundo. / Por¬que tudo era proi¬bido e ele nos disse / que tudo pode ser ousado / desde que se aprenda a entrar a tempo / a colo¬car a voz e a não per¬der / a alma.
Nestas prodigiosas sínteses poéticas, de uma tão lumi¬nosa fun¬dura a que só os príncipes da poesia têm o con¬dão de des¬cer ou de subir, encon¬tra-se deli¬neado um ver¬dadeiro, muito completo e com¬plexo pro¬grama de vida esté¬tica, intelectual e cívica, que tanto Paulo Quin¬tela como Miguel Torga foram cum¬prindo enquanto por cá andaram.
Nas face¬tas que no poema se realçam, tornou-se Quintela grande mes¬tre e a sua obra de inte¬lec¬tual e o seu exem¬plo de cida¬dão empenhado deram disso testemu¬nho.
A poe¬sia e a prosa de auto¬res de «fran¬ças e aragan¬ças», que, através de tradu¬ções exemplares e recre-adoras, natu¬rali¬zou sem qualquer sotaque para portu¬guês e que fica¬ram desde logo per¬tença da Literatura Portu¬guesa; se tives¬sem os seus auto¬res cá nas¬cido, seria decerto como ele as traduziu que escre¬ve¬riam na nossa lín¬gua; o tea¬tro vicentino que estu¬dou e amou como nin¬guém desde os ban¬cos do Liceu de Bra¬gança difun¬diu e o elevou, depois, para o seu sítio condigno e certo: as tábuas do palco; o cida¬dão livre que sem¬pre ousou ser, numa pátria contami¬nada por gran¬des medos miudinhos por tan¬tas outras toxinas que lhe cons-purca¬ram a atmos¬fera, não raro tor¬nando-se, armada ou arma¬di¬lhada de um pesa¬dume propenso e pro¬pí¬cio a que certas criatu¬ras se ban¬deas¬sem, fra¬quejas¬sem e se per¬des¬sem, alma incluída, no céu da sua con¬ver¬são…
No poema sobre Torga, Manuel Alegre, em palavras sucintas e certei¬ras, como é timbre dos grandes Poetas, delineia e recria, minuciosa¬mente, o quotidiano do Poeta de Orfeu Rebelde.
Era do seu consultó¬rio, no Largo da Portagem, que o Poeta, depois de regressar da noite, quase sempre insone, de macerado trabalho poético, em sua casa, zar¬pava todos os dias para viagens que só ele sabia des-lindar.
Transcrevo o poema de abertura do 1.º Diário, 3 de janeiro de 1932, (Torga ini¬ciava e rematava sempre os seus Diários com um poema), que reflete esse trabalho noturno, notívago, a que se entregava com a devo-ção de um crente da poesia que nunca deixou de ser:
Deixem passar quem vai na sua estrada. / Deixem passar / Quem vai cheio de luar. / Deixem passar e não lhe digam nada. // Deixem, que vai apenas / Beber água do Sonho a qualquer fonte; / Ou colher açu¬cenas // A um jardim ali defronte. // Vem da terra de todos onde mora / E onde volta depois de amanhecer. / Deixem-no, pois, passar, agora // que vai cheio de noite e solidão. / Que vai ser / Uma estrela no chão.
Vale também a pena transcre¬ver um texto do Diário XII, de fevereiro de 1977, em que o autor de Orfeu Rebelde revela, genialmente, a maneira como nasce um poema:
Foi durante a noite que escrevi o poema. Acordei inquieto, estremu¬nhado, fiquei numa sonolência lúcida e, aos borbotões, os versos, na imprevisibilidade do minério arrancado às trevas da mina, começa¬ram a surgir à tona do silêncio, alguns já estremados, puros, outros ainda agarrados ao cascalho.
Depois, a razão clarificadora acu¬diu à inspira¬ção tumultuosa, britou, peneirou, lavou, orde¬nou, e as pepi-tas ficaram articuladas de tal maneira que acabaram por formar um todo coeso, harmonioso e autó¬nomo.
Um texto na sua plenitude existencial, inex¬pugnável como um dia de sol. Excitado pela evidência do mi-lagre, que eu próprio mal podia compreender, não consegui mais pegar no sono.
Pus-me a recitar cada estrofe, primeiro numa espécie de terror sagrado, a experimentar a segu¬rança do ritmo, a verificar a verdade das rimas, a avaliar a flagrância das imagens.
Por fim, confiado, a abaná-las rijamente, e a concluir, desvanecido, que tinha as raízes seguras. E assim tenho passado o dia com elas no ouvido, numa exal¬tação secreta, estranhamente otimista, menos vulnerável aos empur¬rões da multidão, feliz sem o dar a entender.
É um regozijo íntimo, fundo, como se me encon¬trasse bafejado por uma graça que não tivesse merecido, nem pedido, nem recebido de ninguém. (8/2/1977, Diá¬rio XII).
Paulo Quintela foi o primeiro homem de teatro portu¬guês que pôs em cena Miguel Torga. Em 1947, o TEUC represen¬tava Terra Firme no ve¬lho Teatro Ave¬nida, e doze anos mais tarde, no mesmo local, o CITAC, que convidou expressa¬mente Quintela para ence¬nar uma peça de Miguel Torga, repre¬sentava o poema dra-má¬tico O Mar, inte¬grado no seu I Ciclo de Teatro.
A partir daí os desti¬nos des¬tes dois homens alti¬vos, como duas ver¬tentes de um Marão de carne e osso, sepa¬ram-se para o resto da vida. E foi pena. Nunca soube deslin¬dar as razões por que se deu tal rotura, nem tal¬vez as hou¬vesse bem defini¬das.
Seriam for¬tes razões do cora¬ção, atrevo-me até a dizer de um grande amor ferido. No fundo, admiravam-se mutua¬mente, e outra coisa não seria de espe¬rar de homens de tama¬nha en¬ver¬gadura. Eu próprio posso disso dar testemu¬nho.
Paulo Quin¬tela conti¬nua no seu labor de tra¬du¬zir auto¬res alemães, ingle¬ses e franceses como Brecht, Nelly Sachs, Haupt¬mann, Nietzs¬che, Goe¬the, Kant, Ben John¬son, Molière e prossegue no TEUC durante cerca de mais dez anos, ence¬nando Gil Vi¬cente, Molière, auto¬res gre¬gos, como Eurípedes e Sófo¬cles, e modernos como Gar¬cia Lorca e José Régio.
Mi¬guel Torga havia ainda de publi¬car dois livros de poe¬sia, Câmara Ardente e Poemas Ibéri¬cos, três de prosa, o quinto e o sexto dias da Criação do Mundo e nove volumes do Diá¬rio.
Paulo Quintela é o primeiro a sair de cena.
No dia 9 de março de 1987. Na véspera, domingo à noite, esti¬vera a ver um pro¬grama tele¬vi¬sivo in-titulado Eu, Miguel Torga, docu¬men¬tário sobre o autor da Cria¬ção do Mundo.
Aca¬bado o pro¬grama, foi-se dei¬tar e não mais acordou.
Pre¬monitó¬rio, não acham?
Eu tinha estado com ele na sexta-feira ante¬rior. E havia prometido levar-lhe na sexta seguinte o Diá¬rio XIV, aca¬bado de sair, do qual lhe falara com entu¬siasmo durante a nossa última con¬versa de sexta-feira, 6 de março de 1987.
À despe¬dida, no alto da escada, ainda me preve¬niu: «Não te esque¬ças de me trazer o diário do Torga…»
Miguel Torga viria a morrer cerca de oito anos mais tarde, em 17 de janeiro de 1995. No seu penúl¬timo diário, o XV, pode ler-se, na entrada com data de 9 de março de 1987, dia da morte de Paulo Quin¬tela: «A mor-te é uma grande re¬conciliadora. Não há desa¬vença que lhe resista. O seu grande manto de equanimi¬dade co-bre todas as pai¬xões da mesma vani¬dade. Só é pena que, depois dela, tudo seja irremediá¬vel.»
Depois de tudo, fico com a sensação de vazio abso¬luto, de que tudo ou quase tudo ficou por dizer.
Paulo Quintela e Miguel Torga são grandes de mais para ca¬berem nas pági¬nas de qual¬quer escrito, e eu demasiado pequeno para os fa¬zer caber numa simples e despre¬tensiosa comunica¬ção como esta com que vos tenho vindo a massacrar o bicho do ouvido e da paciência.
Re¬pare-se, porém, no milagre da poe¬sia, capaz de sínte¬ses ful¬guran¬tes: ficaram ambos retra¬tados, em corpo e alma, no poema de Manuel Ale¬gre.
São assim os Poetas.

Bragança, 1 de outubro de 2009