De uma judiaria em Marrocos nasceu um império nos Açores – Dinheiro – SÁBADO

Os Bensaude partiram de Marrocos no século XIX em busca da terra prometida. São hoje a família com mais poder na economia dos Açores

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De uma judiaria em Marrocos nasceu um império nos Açores
Foto: Empréstimo de Hélène Oulman Mesquitela ao Instituto Superior Técnico/ Núcleo de Arquivo © Instituto Superior Técnico
Não era fácil a vida dos judeus sefarditas que habitavam as cidades costeiras de Marrocos, para onde haviam fugido do Santo Ofício. Os sultões toleravam os judeus, que lhes enchiam os cofres. Mas sempre que mudava o monarca, eram alvo de violência e extorsão. Obrigados a viver em judiarias tinham ainda de usar vestuário distintivo.

PUBO conhecimento dos movimentos sociais europeus dos finais do século XVIII, mais favoráveis à tolerância religiosa, alimentou a esperança numa existência diferente. Abraão Bensaude e outras famílias judaicas chegam à ilha de São Miguel em 1819. É a viagem inaugural de um percurso que levaria à criação do império Bensaude, o maior grupo privado dos Açores.

O relato da epopeia é escrito por Alfredo Bensaude, no livro “A Vida de José Bensaude”, seu pai. Aquele que foi o fundador do Instituto Superior Técnico, em Lisboa, acrescenta como motivo a recuperação do prestígio que o povo hebraico tivera em Espanha e Portugal. “A lembrança da época brilhante da civilização hispano-luso-judaica nunca se perdeu na memória dos descendentes, que sempre se consideraram peninsulares”. Porque Espanha continuava fechada, no início do séc. XIX, “os judeus aventuraram-se por terras portuguesas e alguns desembarcaram no arquipélago dos Açores”, lê-se na tradução francesa da obra.

A mudança não era isenta de riscos. A Inquisição continuava a existir, embora sem o poder e prestígio de outros tempos. Seria abolida pela Assembleia Constituinte a 24 de Março de 1821. Isso não impediu que os “judeus marroquinos”, como eram nomeados, tivessem enfrentado uma forte oposição dos comerciantes locais e discriminação pelas autoridades municipais.

Abraão Bensaude foi o primeiro a estabelecer-se nos Açores, em Ponta Delgada. Os negócios arrancam em 1820, ano que o Grupo Bensaude fixa como data da sua fundação. Tal como as outras famílias de judeus que chegaram, Abraão dedicava-se ao comércio de tecidos importados do continente e de Inglaterra, mais finos e vendidos mais baratos que os feitos no arquipélago. Os barcos que traziam os tecidos levavam laranjas, então o principal sustento económico das ilhas, e cereais.

A sorte diferente dos Bensaude
Abraão não foi o único Bensaude a partir para os Açores. Poucos anos depois chegam também o irmão Elias e o primo Salomão. Se Abraão acabaria por não ser bem sucedido nos negócios, falecendo com dívidas por pagar, como relata a historiadora Fátima Sequeira Dias no artigo “Quando as Ilhas se Tornavam Demasiado Pequenas”, os outros dois haveriam de vingar. Em particular Elisas Bensaude, que segundo a mesma historiadora “conseguiu uma posição de domínio no comércio de redistribuição insular”, com negócios em São Miguel, Faial, Terceira, Lisboa, Manchester e Londres.

José Bensaude, filho de Abraão, há-de vingar o infortúnio do pai. Envereda pela área industrial. É ele que desenvolve o cultivo do tabaco em São Miguel, com a fundação da Fábrica de Tabaco Micaelense, em 1866. Actividade que se revelaria fundamental para a economia e o emprego nas ilhas após o declínio acentuado da “economia da laranja” que ocorre a partir dessa altura. Esse iria também o primeiro grande teste à capacidade de adaptação da família, que respondeu com a diversificação dos negócios.

Assim nasce a maior empresa dos Açores
O Grupo Bensaude nasce da junção das empresas de Elias e Salomão, negócio precedido da união das famílias pelo matrimónio – a filha de um casa com o filho de outro. Após a morte dos primos é constituída em 1873 a Bensaude & Co., criando aquela que é desde então a maior empresa dos Açores e uma das maiores do país.

A criação da sociedade é acompanhada da mudança da sede para Lisboa. O grupo aposta no armazenamento de carvão e no transporte marítimo, com a Companhia Insulana de Navegação. No Barreiro é fundada, em 1891, a Parceria Geral de Pescas, que se tornaria no maior armador português da pesca ao Bacalhau. Acabaria por entrar em declínio após a adesão de Portugal à CEE, em 1986, devido à introdução das quotas.

A entrada no turismo
A dinastia segue com Vasco Bensaude, neto de José, que herda quotas pertencentes aos vários ramos da família e torna-se o detentor único do património familiar. A diversificação de actividades do Grupo prossegue ao longo do século XX. Vasco Bensaude é o principal investidor na construção do Hotel Terra Nostra nas Furnas, durante a década de 30, ainda hoje a unidade mais emblemática do Grupo no turismo.

Seguem-se a aquisição da Companhia de Seguros Açoreana e do Banco Micaelense. Os Bensaude são também fundadores da Sociedade Açoreana de Estudos Aéreos (hoje SATA), em 1941. A mais antiga companhia aérea portuguesa nasce da visão de que o transporte aéreo iria passar a ter mais relevo que o marítimo. Os negócios corriam de feição, mas a família haveria de enfrentar um novo e decisivo teste.

Nacionalizações levam banco e seguradora
Com as nacionalizações do pós-25 de Abril os Bensaude perdem grande parte do património: o banco e a seguradora (hoje parte do Banif) passam para o Estado. Assim como a fábrica de tabaco. Poucos anos depois, o Grupo é também “convidado” a vender a SATA.
A família não abandona o País, mas sai da capital. Filipe Bensaude, filho primogénito de Vasco, muda a sede do Grupo para Ponta Delgada em 1976.

“O regresso a São Miguel resulta de uma solicitação insistente feita pelos trabalhadores”, conta António Castro Freire, sobrinho de Filipe e vice-presidente do conselho de administração. Desnatado de alguns dos seus principais activos, Filipe fica com a difícil tarefa de assegurar a sobrevivência do negócio da família. “Seguiram-se anos de recuperação depois das perdas sofridas.

Foi um processo longo para o qual concorreu o trabalho dos membros da família activos na empresa e o apoio dos restantes accionistas familiares”. O armazenamento e comercialização de combustíveis assume-se como uma das âncoras do renascimento do Grupo. Área ainda hoje central na actividade da Bensaude, parceira da Repsol desde 2005, e que é alargada com a integração dos postos da BP por efeito da aquisição do Grupo Nicolau Sousa Lima em 2007.

É no entanto outra a principal mais-valia daquela compra. Os Bensaude herdam a parceria com a Sonae Distribuição nos Açores, o que vem aumentar em muito a dimensão e o número de trabalhadores do Grupo.

A fase mais recente é marcada pela saída da família da gestão executiva e a aposta na profissionalização. Luís Bensaude, filho de Filipe, cede em 2009 o seu lugar a Victor Cruz, antigo líder do PSD Açores.

O Grupo faz 195 anos. António Castro Freire atribuiu esta longevidade em primeiro lugar “à forte ligação aos Açores, que sempre foi uma orientação estratégica ao longo de várias gerações”. Uma longevidade que “não pode nunca ser considerada um dado adquirido”.

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