Eduardo Bettencourt-Pinto escreve

Eduardo Bettencourt Pinto
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Há alturas em que não a oiço. Apenas o som emitido pelo frigorífico, como agora, na sala, enquanto releio Vergílio Ferreira. De repente aparece-me esta frase: «Porque a infância, querida, é sempre uma ameaça para um homem.» Esta afirmação acorda-me, faz-me estremecer. Fico despido, nu. As minhas mãos já não cabem nas da minha mãe como folhas de cerejeira. Já não tenho esse refúgio, essa árvore que me dava sombra e protecção. Sou o meu destino, descalço sobre os cacos da minha fragilidade. Estou só na longa estrada. As palavras de Vergílio Ferreira são um vendaval. Tornam-se mais fortes do que o silêncio, respiram dentro de mim. Evocam fragmentos de um espelho que se partiu de encontro ao tempo. Não é fácil olhar para trás quando as imagens da nossa vida estão todas espalhadas pelo chão. Não há chuva tão fria como a das lágrimas. A infância foi um sonho breve, é certo. O homem acorda e ajoelha-se perante o passado numa tarefa de recolha. São muitos os fragmentos – uma mancha na água pura da inocência, ofensas sem resposta, cumular de recalcamentos. Ausências. Depois a indignação perante aquilo que já não tem remédio. Tudo passou menos a memória das coisas, prisioneira de um grito insano. Até o belo tem uma ferida, uma picada, um alfinete preso na pele. A certa altura um homem torna-se num mapa de vivências, a cabeça num espólio de imagens. Por isso eu não sou daqui. Salto de terra em terra, de momento a momento como uma palavra peregrina. Sou poesia e vento. Esquecimento. Ando descalço pelo mundo com África na minha voz, e não peço desculpa por levar nos bolsos o cheiro das goiabas. A minha infância tem um rio nos olhos da minha mãe. É para lá que vou, agora e sempre.