Moisés Lemos Martins: Os patrulhadores do Género nas Ciências Sociais

Fonte: Correio do Minho

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Os patrulhadores do Género nas Ciências Sociais

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Ideias

2017-09-25 às 06h00

Moisés de Lemos Martins Moisés de Lemos Martins

Não existe comunidade humana, nem sentido que nela circule, sem uma língua. As comunidades humanas apenas se constituem como comunidades dando-se uma língua, ou melhor, construindo-a. E é também através de uma língua que os indivíduos se constroem, desconstroem e reconstroem. Aliás, a nossa vida não é outra coisa, senão uma intérmina dobadoira em que nos fazermos, desfazemos e refazemos.
Mas não existem línguas individuais. As línguas são das comunidades humanas, para uso dos indivíduos. Por essa razão, não exageramos ao dizer que quando olhamos para as coisas, já as compreendemos simbolicamente. Porque a sociedade, ao dar-nos uma língua, deu-nos nela uma chave de entendimento das coisas, uma chave interpretativa.

Mas a força de uma língua não se esgota a significar as coisas, a representá-las, a dar-lhes um sentido. A língua permite-nos criar mundos. Neste caso, dizer é fazer. Com as palavras, não dizemos apenas as coisas, também as fazemos. Na tradição ocidental, a primeira função atribuída à palavra foi exatamente essa, com palavras fazer o mundo. Dizendo as coisas, nomeando-as, Deus chamou-as à existência. É isso o que podemos ler no Génesis. As palavras fazem com que haja mundo – um território de seres animados e inanimados, e até de seres fantasmados, por apenas existirem em sonho. Mas quando chegámos ao Evangelho de São João, que é o último dos Evangelhos a ser escrito, a palavra já havia passado a caraterizar o próprio Deus: no princípio era o verbo, e o verbo estava orientado para Deus, e o verbo era Deus.

Sempre me interessei, particularmente, pelas formas de poder que pela palavra se estabelecem entre os indivíduos, sejam homens ou mulheres, e também, pelas formas de poder que pela palavra se estabelecem no meio dos homens como instituições, como coisas aparentemente definitivas.
Boa parte da minha atividade científica tem tido essa orientação: interrogar o modo como nas comunidades humanas os indivíduos estabelecem modos de pensar, imaginar, sentir e agir, que lhes permitem dominar os outros, exercer sobre eles violência, fazer-lhes guerra, mandar neles. E interessa-me, sobremaneira, a “servidão voluntária”, o amor aos tiranos, que permite a uns poucos poderem exercer o poder sobre muitos, para falar como La Boétie, o filósofo francês do século XVI, amigo de Montaigne.

As Ciências Sociais têm preocupações deste tipo. Para analisar as relações de poder, ou então, as formações discursivas, recorrem à Sociologia, à Antropologia, à Ciência Política, à Psicologia Social, à Sociolinguística, à História das Mentalidades.
Estudei, há anos, a ideologia salazarista e o modo como as representações católicas do mundo e da vida acabaram por ser um instrumento de legitimação do Estado Novo. Para analisar os discursos de Salazar e de Cerejeira utilizei os recursos da sociolinguística e os trabalhos de Michel Foucault sobre as formações discursivas: História da Sexualidade, História da Loucura na Idade Clássica, e Vigiar e Punir – Nascimento da Prisão.

Ao analisar os discursos de um político, que legitimaram um regime, durante quase meio século, interroguei as representações do mundo e da vida dos anos trinta e quarenta do século XX e o modo como, então, determinadas formações discursivas emergiram, social, política e economicamente, a ponto de se constituírem como fortalezas, diante de um povo, e passaram a constituir o seu imaginário. Para o fazer, recorri à análise de formações discursivas, que não tinham por objeto imediato a ação política, e sim, a sexualidade, o hospital e o cárcere. E foram estes recursos, apenas os das Ciências Sociais, que me permitiram tirar a conclusão de que o salazarismo havia sido, ao mesmo tempo, um seminário, um quartel e uma prisão.

Li, todavia, há meses, na avaliação que a Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) fez a um aluno de doutoramento, que submeteu o seu projeto a um concurso de bolsas, o seguinte parecer de recusa: “O orientador não é especialista em Estudos de Género, ou teoria queer, ou estudos LGBT”. E o veredicto foi taxativo:
um cientista social, que exerça a sua profissão, fazendo a história das formações discursivas e analisando relações de poder, não tem as condições científicas requeridas para assegurar a orientação de quem queira estudar as relações de poder e as formações discursivas, presentes nas representações sociais que discriminem minorias sexuais, a não ser que seja especialista em Estudos de Género, ou teoria queer, ou faça estudos de LGBT.

Mas de que ciência se pode reclamar quem nas instituições do Estado aparece, em nome das Ciências Sociais, em trabalho de patrulha, a garantir a qualidade de género da Sociologia ou das Ciências da Comunicação?
Estudar LGBT, ou seja, Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgénero, e também Queer, já para não falar dos “31 géneros reconhecidos em Nova Iorque” e repertoriados por Adele Gradis no seu portal A Coisa Toda, não pode ser um assunto feito à medida de uma “Ciência do Género”, porque tal não existe nas Ciências Sociais; nem à medida de quaisquer “cientistas do género”, porque a única coisa que existe são bons ou maus cientistas sociais.

É conhecida, hoje, a tendência para o disparate letrado, o disparate culto, até no campo científico. Veja-se, por exemplo, aquilo que a Universidade alemã de Reutlingen aprovou como regras orientadoras para “o uso de linguagem sensível ao género, em comunicação, pesquisa e administração”. Uma das recomendações é o uso daquilo a que chama “linguagem neutra” – como se as palavras não tivessem história. E propõe, então, verdadeiros acepipes. Um deles é dizermos “Graduates”, em vez de “Alumni”. A “linguagem neutra” é o mesmo que café sem cafeína, vinho sem álcool, tabaco sem nicotina, doces sem açúcar, enfim, uma boa iguaria, mas vegan, quando a realidade, toda a realidade, é sempre rugosa, viscosa, enfim, complexa.

O disparate do politicamente correto deixou, todavia, de ser apenas a porção normal de patetice a que o comum dos mortais tem direito. É verdade, existe, hoje, em certo tipo de discurso, feito em nome da ciência, que não passa de um policiamento da linguagem, com tiques penais.
E é um facto, vemos cada vez mais tiques penais no discurso, quando alguém pensa estudar minorias sexuais. Porque os indivíduos e as comunidades são figurados como se não tivessem história, e a história como se ela não tivesse memória.
Não é aceitável que haja patrulhadores do género nas Ciências Sociais. E menos ainda o é em organismos de Estado, como é o caso da Fundação para a Ciência e a Tecnologia.

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