O ROSÁRIO DAS FESTAS DA SENHORA NA LOMBA DA MAIA, 28 agosto 2012,

  1. CRÓNICA 120, O ROSÁRIO DAS FESTAS DA SENHORA NA LOMBA DA MAIA, 28 agosto 2012,

Nem tive coragem de lhes dizer que Andrómeda se prepara para deglutir a Via Láctea (daqui a uns milhares de anos) …vai ser um cataclismo enorme que converte-rá a Terra em poeira cósmica ou lançá-la para o enorme buraco negro de energia negra que enche o universo e lhe dá consistência.

Mas não assomei à janela aberta para os alertar. Estavam tão felizes aqui nesta minha aldeia da Lomba da Maia (freguesia, aqui não lhe chamamos aldeia, sussur-ram-me, de novo).

Havia centenas de pessoas aglomeradas nas ruas engalanadas com os postes e bandeiras e as luzinhas do costume. A igreja fora enfeitada por dentro e por fora, apresentando o seu aspeto mais feérico do ano, as pessoas vestiam os seus fatos do-mingueiros, outros usavam vestes nupciais para assim darem mais solenidade ao evento.

Os homens que normalmente, ao domingo, ficam à porta da igreja, da parte de fora, andavam vestidos com capas de cor branca com capelinas de azul céu, prontos a levarem, o andor de nossa senhora do rosário da Lomba da Maia.

A parada da charanga dos bombeiros de Nordeste só viria troar os seus tambores na segunda-feira dia da procissão ao cemitério e da procissão da mudança à noite, e isto era domingo, dia maior da procissão, com estradas e ruas cortadas pela PSP, en-quanto as pessoas afanosas atapetavam de flores as ruas por onde a procissão iria passar.

Entretanto o Sá Couto de dez em dez minutos botava fotos no Facebook para os emigrantes que não puderam vir à festa verem o que se estava a passar, quem esta-va, quem não estava, quem vestia o quê, quem não pusera colchas à janela, quem fechara as portadas das janelas, quem não fora à missa, etc…

Tudo bem documentado fotograficamente para memória futura, conversas inter-mináveis de café e ajustes de contas eternos. O desfile de carros alegóricos infeliz-mente foi dos mais pobres dos últimos anos, talvez refletindo a crise não só financei-ra, como de ideias e de falta de jovens empenhados em manter viva e acesa esta tradição.

Dizia eu que me esquecera de os avisar que todas estas festas e procissões acres-cidas de rezas e promessas não iria impedir Andrómeda de vir deglutir a mais pe-quena galáxia da Via Láctea onde se insere o pequeno planeta azul em que vivemos. Andavam tão felizes, a realizar o sonho anual de diversão e fé.

Compreendo que antigamente esta fosse a ocasião maior do ano, para se celebra-rem casamentos, e se terem uns dias de festa a compensar o trabalho escravo dos que labutavam de sol nascer a sol-posto, mas hoje em dia a situação é diferente.

Estamos já no século XXI, os casamentos já não são arranjados entre os parentes e vizinhos, já há muitos que casam fora deste círculo lombadamaeinse, outros nem se-quer trabalham e vivem dos rendimentos mínimos ou de inserção social como párias que são, muitos preferiram uma vida fácil de drogas e furtos, a sociedade já não tem a tecido moral e cívico de antanho.

Mas no inconsciente rural a festa continua a simbolizar a liberdade de uns dias fo-ra da escravatura do trabalho. Gastam fortunas a preparar as comidas, as vestimen-tas, os andores, as ruas, é a consumação que se presume alegre e embebedada na maior parte dos casos, dos sacrifícios e das poupanças feitas ao longo do ano para serem consumidas nestes 5 ou 6 dias de festividades. Não entendem o meu alhea-mento, o silêncio a que tenho direito, a paz e sossego que aqui busquei e muito me-nos entenderiam a Andrómeda, talvez me perguntassem se era uma nova persona-gem da telenovela favorita.

Nem entendem que eu fuja nesta época do ano para outras ilhas ou que me enca-fue aqui na falsa – de portadas e janelas fechadas – tentando abafar o som tonitruan-te da discoteca improvisada na Rua do Rosário e que abana as ruas e as casas até às 3 da manhã.

Nem sequer me dou ao trabalho de explicar que sou a favor das tradições e festas populares, mas que creio que a abordagem pouco lógica e não-analítica dos locais, é já uma encenação da tradição, desvirtuada de mil e uma maneiras, e não se justifi-cam as libações anuais da festa nos moldes em que originalmente foi concebida.

Sei também que para além de desconhecerem a Via Láctea e Andrómeda ou ou-tras galáxias isso não os afeta pois está a tantos milhares de anos no futuro que eles nem sequer entenderiam, mas o que eu que pretendia de facto dizer-lhes, era que estes sacrifícios, estas festas de nada iriam servir pois não podem impedir o choque de galáxias.

Dir-me-iam que me falta a fé para acreditar e que se assim acontecesse seria essa a vontade do Senhor e as galáxias teriam de obedecer já que eu não o faço…

Depois da procissão, os homens tiraram as capas com que desfilaram e foram jun-tar-se aos restantes nas tabernas e tendinhas improvisadas que aqui surgem nestes dias pois as tabernas locais (de dia, são cafés) não chegam para tanta sede.

Numa delas “Ká t’espero” que todos os anos surge como um cogumelo, mais aci-ma, do outro lado desta rua, eram sete da manhã e as portas ainda não tinham fe-chado, as vozes entarameladas, os discursos desconexos, as bravatas de sempre até que a luz se fechou, pois, o sol já nascera e por entre gritos e imprecações cada um foi regressando para donde viera.

Aumentada assim a autoestima e orgulho dos locais, a aldeia vai voltar a hibernar presa a tanta grilheta do passado, por entre inúmeros casos de violência doméstica, pedofilia e feudalismo encapotado, que coexistem com os ladrões e pequenos meli-antes do gangue da droga que se reúnem no largo da igreja.

Irão prosseguir as queixas e invejas da vizinha Maia que se quer alcandorar (e jus-tificadamente) a vila enquanto a Lomba permanece parada no tempo e no espaço à espera de Andrómeda, sem ideias, sem jovens, sem ousadia nem visão para o futuro que já se vive em tantos outros lugares.

Mas em todas as ilhas nestes meses de junho a setembro, vão prosseguir em todas as aldeias (chame-lhes freguesias que aqui não temos aldeias, senhor) as festividades em honra de todos estes santos e santas da santa madre igreja que ainda vai tendo alguma influência. Esta, revela-se sobretudo no seio das mulheres e jovens dessas aldeias açorianas, mas a igreja local tem-se revelado incapaz de captar a maioria dos adolescentes e os homens disponibilizam-se apenas para colaborar em festas, procis-sões, enterros e romagens, continuando a ficar à porta das igrejas ou no bar em fren-te.

A intriga, as telenovelas e o clima irão continuar a preencher o quotidiano desta gente, mas cada ano nascerão menos crianças, e cada ano que passa mais se liberta-rão destas grilhetas do passado.

Os que emigraram continuarão porém a manter arreigadas todas estas tradições e a tentar perpetuá-las como se o tempo tivesse parado na memória da sua infância e juventude, mantendo viva a sua peregrinação anual de volta à aldeia para as festas da padroeira, reforçando os laços que os unem a esta terra e a reproduzirem nas su-as novas terras estas tradições com os meios locais de que dispõem o que cria festas híbridas incorporando aspetos de culturas distintas, como tive oportunidade de paci-entemente observar em vídeos que o Dr Luciano da Silva (o da Pedra de Dighton e de Colombo Português) me mandou para eu estudar esse portuguesismo açoriano.

Ao observar essas festas com tanto elemento exógeno incorporado e tão pouco genuíno interroguei-me se as crianças que nelas participavam sem falarem portu-guês, iriam preservar a língua ou se apenas iriam associar a sua açorianidade aque-las festas travestidas.

Afinal, todos nós recordamos as festas da nossa infância e quando envelhecemos refugiamo-nos nelas para nos protegermos do que nos ameaça numa sociedade em constante evolução.

Lembro que as festas da minha juventude, nas aldeias transmontanas, me pare-cem ainda hoje, mais genuínas do que estas que se desenrolam cinquenta anos mais tarde nesta ilha.

Apesar das semelhanças exógenas óbvias cinquenta anos são duas gerações hu-manas em que se espera haver alguma evolução e mudança, aquilo a que vulgar-mente se chama “progresso” e é sempre o bode expiatório de todas as alterações da identidade de um povo.

E as festividades locais vão prosseguir mais dois dias, mas nestes dias o movimen-to é sobretudo dos vendedores de cachorros quentes, pipocas e pequenos brinquedos e das “discotecas” e tabernas improvisadas.

Para o ano, tudo se repetirá inexoravelmente nos mesmos moldes se, entretanto, o mundo não acabar como dizem as alegadas profecias maias e outras.

Para muitos – como eu – o mundo já acabou há muito e já vivemos noutro mundo bem diferente daquele que sonhámos na nossa juventude.

Publicado por

CHRYS CHRYSTELLO

Chrys Chrystello jornalista, tradutor e presidente da direção da AICL

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