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O DIA EM QUE JOAQUIM BENITE E EU BARALHÁMOS
JOSÉ SARAMAGO
Em 1980, ano particularmente celebrativo da morte de Luís de Camões, tinha o já famoso Grupo de Campolide (então sediado na Academia Almadense), em preparação uma obra dramática de José Saramago, sobre os últimos tempos do Poeta em Lisboa: “Que Farei com Este Livro?”
E acontece que certo dia, sendo eu visita frequente daquele espaço teatral – e até porque também ali estava programada uma peça minha naquela temporada: “Viagem a Damasco” – resolvi aparecer ao fim da tarde, um pouco antes da hora prevista para o ensaio. Mas não entrei diretamente na Academia. Entrei primeiro na pastelaria ali muito próxima, onde às vezes me encontrava com o Joaquim Benite e outros colegas seus do Grupo de Teatro. Surpresa das surpresas: ali estava o Benite, sim, senhor, só que a graciosa barba, que apesar de juvenil era espessa, lhe desaparecera do rosto por completo.
Festejámos, claro, a jubilosa e radical mudança do aspeto do encenador. E ele não tardou em dizer-me que o José Saramago era precisamente esperado dali a pouco, para assistir ao ensaio da sua peça. Pelo que me convidava a participar duma partida que desejaria pregar ao escritor. E logo traçou o seu plano. Era quase certo que ele, Saramago, longamente habituado a vê-lo copiosamente barbado, não o iria reconhecer. Competia-me então apresentar-lhe o Benite como um jovem encenador alemão, amigo meu, curioso de assistir ao ensaio daquela peça. E eu, embora timidamente, logo ali lhe inventei um nome germânico bastante verosímil: Wolfgang Schneider, ou algo assim. Mais: ensinei ao Benite uma frase alemã muito corriqueira: “Es freut mich sehr, Sie kennenzulernen”. (Tenho muito prazer em conhecê-lo.)
Dirijo-me então, com o Joaquim Benite, ao teatro, e logo no vestíbulo nos encontramos com o escritor, acompanhado de Isabel da Nóbrega, sua companheira de então. Ora, nem ele nem ela, realmente, reconheceram o encenador de “Que Farei com Este Livro?”. De modo que eu, com invulgar desembaraço, comunico ao escritor (longe ainda de ser “nobelizável”) que o Benite me havia autorizado a trazer comigo ao ensaio aquele “meu encenador alemão” – e logo ali lhe apresento o desbarbado personagem, o suposto Wolfgang Schneider.
Procedo então às apresentações e é então que o desbarbado engrola a frase alemã que eu lhe ensinara. E Saramago, estendendo-lhe a mão, não o reconhece e lamenta que a visita não seja dali a mais uns dias, estando já os ensaios numa fase de mais apuramento. (E eu traduzo esse pesar para alemão, embora ciente de que o pseudo-visitante germânico não entenderia uma única palavra.)
Foi então que ele, contemplando por um instante o ingénuo comportamento do escritor, lhe levou a mão ao queixo, num afago tremelicante, e lhe disse: “Ó José Saramago: sou eu, o Joaquim Benite.”
Desataram-se os risos no grupo, dirigindo-se para a sala de ensaio. E o melhor, certamente: mantiveram-se ao mesmo nível as nossa relações de apreço e amizade.
NORBERTO ÁVILA
(www.norberto-avila.eu)