J.M. Soares de Barcelos Curiosidades sobre a linguagem açoriana

J.M. Soares de Barcelos
24 July at 11:04 ·
Curiosidades sobre a linguagem açoriana

Em 2009 publiquei um livrinho intitulado Falares do Outro Arquipélago, em forma de dicionário, reunindo as falas populares da Ilha do Corvo e da Ilha das Flores. Tenho recebido várias mensagens de leitores que se interrogam por que motivo intitulei assim o livro, e até quase fui acusado de separatista por outro leitor emproado na sua santa ignorância.
Passarei a explicar a razão do título do livro e do seu conteúdo.
Como se sabe, as ilhas do Grupo Ocidental dos Açores, Corvo e Flores, foram descobertas bastantes anos depois das outras ilhas açorianas (Santa Maria terá sido em 1427 → as Flores em 1452). Os navegantes, quando as encontraram, tão longe, pensaram tratar-se de um arquipélago separado das ilhas anteriormente descobertas e puseram-lhes o nome de ‘Outro Arquipélago’ — daí a razão de título tão ‘polémico’.
Em 2001 eu já tinha publicado um pequeno livro sobre as falas populares da Ilha das Flores, intitulado Falas das Ilhas das Flores.
Alguns anos antes, o Doutor João António das Pedras Saramago, meu amigo de longa data, natural do Corvo, publicara em 1992, em Grenoble (França), um trabalho, anteriormente apresentado em Portugal em 1988, como Tese de doutoramento, intitulada A Ilha do Corvo — Alguns Aspectos Linguísticos. Após a sua leitura, achei interessante notar que, mau grado os contactos muito frequentes entre as gentes das duas ilhas, o Corvo apresentava nas suas falas variadas particularidades, dizeres mesmo únicos no mundo das falas dos Açores, isto apesar de possuir muitas expressões em comum com as Flores. Então, juntei as expressões registadas nos dois trabalhos e mostrei-as a João Saramago, que teve a gentileza de escrever algumas palavras de elogio, que serviram de prefácio ao livro, tendo sido publicado com o patrocínio das duas Câmaras das Flores e da Firma Boaventura Ramos & CA., passe a publicidade, porquanto tal Firma já nem sequer existe.
Nas suas falas, o Corvo apresenta muitas diferenças das falas das Flores, não só no léxico como também na fonética, ambos motivados por uma influência notória das falas micaelenses. Após uma primeira fase de povoamento, a Ilha de S. Miguel começou a ficar saturada, faltando ocupação para muita gente, dado o predomínio do latifúndio local. Assim sendo, muita gente migrou para as Ilhas de Baixo. Se nas outras ilhas, com exceção de algumas freguesias do Pico, aquela influência não foi muito marcada, no Corvo, dada a sua pequenez e sendo essa migração relativamente maciça, natural foi que tivesse ficado até aos nossos dias uma marca bastante acentuada tanto do léxico como da pronúncia micaelense, de que sobressai a palatalização do [u], a que vulgarmente se chama o [u] francês (mas não só…). Muito já se escreveu sobre esta palatalização na Ilha de S. Miguel, grande parte sem qualquer base científica, atribuindo-a, por exemplo, aos povoadores franceses, tendo tal fenómeno sido corroborado por figuras altamente distintas no panorama linguístico português, nomeadamente Mestre José Leite de Vasconcellos, que passou no primeiro quartel do século XX pelas nossas ilhas, numa visita relâmpago que não deu para sedimentar ideias quanto às suas falas populares.
Como se sabe, o Algarve era uma região que estava sob o domínio islâmico, tendo sido conquistado pelos Portugueses, que para lá levaram as suas falas, ou seja o Galego-Português (ou Galaico-Português). Este dialeto fundiu-se com outros modos de falar, nomeadamente com o Moçárabe, língua neo-latina falada pelos cristãos sob o domínio islâmico. Numa certa época houve mesmo bilinguismo no Algarve — árabe e galaico-português. Mas, quando esta fase foi ultrapassada, com a uniformização dos falares daquela província, aconteceu um fenómeno interessante — uma migração importante de gente raiana da Beira Baixa e do Alto Alentejo, particularmente para o Barlavento algarvio. Para aqui trouxeram, não só a maneira singular de pronunciar o [u] → [ũ], mas muitas outras particularidades fonéticas, tais como, por exemplo, a alteração da pronunciação de [em] para [am]: tampo, casamanto, tratamanto (tempo, casamento, tratamento), ou a velarização do [a] (porgo, em lugar de pargo), que ainda hoje caracterizam as falas da gente desta região e as da nossa Ilha.
Estou em crer que tais particularidades fonéticas que caracterizam as falas de S. Miguel terão sido trazidas por gente do Algarve para S. Miguel, não se colocando de lado a hipótese de terem também sido colonos beirões ou alentejanos no Algarve, ou seus descendentes, que, sentindo-se abandonados na província algarvia, e desejosos de um pedaço de terra para cultivar, se terão aventurado a partir para aquela Ilha no meio do Atlântico. Depois, mais uma vez votados ao ostracismo, partiram para a ilha mais pequena dos Açores à procura de uma vida melhor…
Quanto às expressões semelhantes nas duas ilhas, há mesmo, no meio das falas populares dos Açores, termos comuns apenas ao Corvo e a S. Miguel, como por exemplo: bouceiro (sedeiro usado para tirar a baga ao linho), cisqueira (pá do lixo), despensal (saco de transportar o farnel), escandelecer (dormitar), escoumado (muito limpo), frança (lenha miúda), machinho (unha da vaca), mourisca (nas outras ilhas, moirisca), palaio (paio), tassalho (tanto com o significado de toucinho de porco, como de apalermado), etc., etc..
E é assim que, no meu limitado saber, justifico as alterações fonéticas que fazem com que os Florentinos tanto satirizem o modo de falar dos Corvinos.