a escravatura que ainda existe. Os escravos do século XXI pela lente de Jodi Cobb

Joao Paulo Esperanca
12 hrs ·
Deixem-se lá de tretas sobre indemnizações pelos crimes cometidos há séculos pelas diversas partes e lutemos para acabar com a escravatura que ainda existe.

https://nationalgeographic.sapo.pt/index.php?option=com_content&view=article&Itemid=105&id=1296

O título não é uma metáfora. Falamos mesmo de escravos. Não de seres humanos que vivem como escravos, trabalhando por um salário miserável. Não são também os escravos de há 200 anos. Falamos dos 27 milhões de pessoas que, em todo o mundo, incluindo Portugal, são compradas e vendidas, exploradas e brutalizadas para dar lucro. São os escravos do século XXI. As fotografias da reportagem resultam do trabalho desenvolvido por Jodi Cobb, durante o ano de 2003.

Texto Andrew Cockburn Fotografia Jodi Cobb

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“O inferno na terra”, foi a forma como Jodi Cobb descreveu esta fábrica de tijolos em Sadanandapur, na Índia. Os trabalhadores são escravos por dívidas que passam de pais para filhos e perpetuam-se no tempo. “Naquele local, o vento atirava-nos pó para a cara. Era a miséria absoluta. Eu sofri algumas horas, mas aquela gente sofre a vida inteira”, diz Jodi.

O castelo de Sherwood, quartel-general de Milorad Milakovic, antigo funcionário dos caminhos-de-ferro da Bósnia que conquistou fama como traficante de escravos, ergue-se junto à estrada principal, mesmo à saída da cidade bósnia de Prijedor. Sob as muralhas de estuque, a entrada é guardada por musculosos jovens tatuados; ali perto, os animais de estimação de Milakovic – três tigres-da-sibéria – passeiam de um lado para outro dentro do seu recinto enjaulado.
Numa cinzenta manhã de Primavera, cheguei ao castelo – sozinho, porque nenhum guia local ou intérprete se atreveu a acompanhar-me. O robusto anfitrião, de 54 anos, aguardava-me junto de uma piscina coberta de vidro, cor de água-marinha, sentado à mesa já preparada para o almoço.
O senhor de Sherwood nunca escondeu o negócio a que se dedica. Certa vez, perguntou a uma audaz activista dos direitos humanos que divulgara em pormenor o seu historial como comprador de mulheres para os bordéis que possui em Prijedor: “É crime vender mulheres? Também se vendem jogadores de futebol, não é?”

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O corpo de uma mulher pode ser vendido vezes sem conta. Os donos de bordéis israelitas, como este em Telavive, podem comprar jovens da Moldávia ou da Ucrânia por cerca de 3.500 euros. Mesmo um pequeno negócio com dez prostitutas pode render milhões de euros por ano. Fazendo-se passar por recrutadores de mão-de-obra, os traficantes vão buscar as vítimas às cidades pobres da Europa de Leste, atraindo-as com promessas de bons empregos. Quando as mulheres chegam, são entregues a compradores que, por norma, as espancam, violam ou aterrorizam para garantir obediência.

Milakovic ameaçou de morte a activista pela sua franqueza, mas comigo não foi tão agressivo. Enquanto comíamos uma salada de marisco acompanhada de bifes, junto à piscina, discutimos o fluxo de jovens mulheres que fogem à situação económica de penúria dos seus países de origem, no antigo bloco soviético. Milakovic declarou estar ansioso por promover um esquema de legalização da prostituição na Bósnia – “para parar com a venda de seres humanos, porque todas estas raparigas são filhas de alguém”.
Uma dessas filhas é Victoria, loura míope e fumadora inveterada que, aos 20 anos, já se assume como veterana do comércio internacional de escravos. Durante três anos, foi mais uma dos cerca de 27 milhões de homens, mulheres e crianças escravizados em todo o mundo – confinados ou fisicamente restringidos e obrigados a trabalhar, controlados por meio da violência ou de alguma forma tratados como propriedade de alguém.

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Estas mulheres vivem numa jaula com 2 metro por 1. Em Bombaim, na série de bordéis que ladeiam a rua de Falkland, as raparigas mais jovens e bonitas são exibidas em jaulas ao nível da rua para atrair clientes. Muitas mulheres são despejadas por traficantes nestas colmeias, mas muitas também são definitivamente vendidas pelos pais ou pelos maridos. Cerca de 50 mil mulheres – metade das quais são despachadas a partir do Nepal através da Índia,trabalham como prostitutas na cidade. A violência, as doenças, a subnutrição e a falta de cuidados médicos reduzem a sua esperança de vida para menos de 40 anos.

A odisseia de Victoria começou aos 17 anos, ao finalizar o liceu em Chisinau, a decadente capital da antiga república soviética da Moldávia. “Não havia trabalho nem dinheiro”, explicou com franqueza. Por isso, quando um amigo – “pelo menos julguei que era amigo” – lhe propôs ajudá-la a arranjar um emprego numa fábrica da Turquia, ela agarrou-se à ideia e aceitou que ele a levasse de carro até lá, atravessando a Roménia. “Quando percebi que o carro ia para oeste, rumo à fronteira com a Sérvia, compreendi que algo estava errado.”
Tarde de mais. Chegada à fronteira, foi entregue a um grupo de sérvios que lhe fabricaram um novo passaporte, onde se declarava ter 18 anos. Levaram-na para a Sérvia a pé e violaram-na, ameaçando-a de morte se resistisse. Depois, enviaram-na sob escolta para a Bósnia, a república balcânica que então estava a ser reconstruída com remessas maciças de ajuda internacional, após anos de guerra civil e genocídio.

Recita o nome de clubes e bares em várias cidades onde a obrigaram a dançar seminua, mostrar boa disposição e ter relações sexuais com qualquer cliente que a quisesse.

Victoria transformara-se num bem alienável e, nessa qualidade, foi comprada e vendida dez vezes por vários donos de bordéis ao longo dos dois anos que se seguiram, por um preço médio de 1.320 euros. Por fim, grávida de quatro meses e temendo que a obrigassem a abortar, fugiu. Encontrei-a escondida na cidade bósnia de Mostar, onde fora acolhida por um grupo de mulheres.
Num tom monótono e suave, Victoria recita o nome de clubes e bares em várias cidades onde a obrigaram a dançar seminua, mostrar boa disposição e ter relações sexuais com qualquer cliente que a quisesse, pelo preço de alguns maços de cigarros. “Os clubes eram todos horríveis, embora o Artemdia, em Banja Luka, fosse o pior – todos os clientes eram polícias”, recorda.
Victoria tornou-se escrava por dívidas. O pagamento recebido pelos serviços prestados era integralmente entregue ao seu dono do momento para amortizar a “dívida” – a quantia que ele pagara ao proprietário anterior pela sua compra.

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Uma vez condenado, o traficante Chandra Gautam (na imagem) passará 16 anos numa prisão nepalesa. Pesadas sentenças de prisão e investigações policiais eficazes fazem parte daquilo a que o Departamento de Estado dos EUA chama “um esforço significativo do Nepal para pôr termo ao comércio de seres humanos”.

Os proprietários mantinham-na em servidão até que o dinheiro devido a quem a controlava fosse recuperado, momento em que era de novo vendida, recomeçando a trabalhar para remir o preço de compra pago pelo seu novo dono. Embora a escravatura, nas suas formas tradicionais, sobreviva ainda em muitas partes do mundo, a escravatura por dívidas deste tipo é, com variantes, a forma mais comum de servidão nos dias que correm.
Segundo Milorad Milakovic, trata-se de um sistema perfeitamente aceitável. “Há o problema das despesas de trazer uma rapariga até aqui”, explica. “Avião, transporte, hotéis ao longo do percurso, além da alimentação. Essa rapariga tem de trabalhar para recuperar esse dinheiro.”

Milakovic dirigiu-se à imprensa, queixando-se de que as mulheres libertadas lhe tinham custado muito dinheiro e exigindo uma indemnização, pois precisava de comprar outras.

Em Novembro de 2000, o Grupo Policial de Intervenção Internacional (IPTF) patrocinado pela Organização das Nações Unidas realizou uma rusga aos clubes nocturnos e bordéis de Milakovic em Prijedor, libertando 34 raparigas que contaram histórias de servidão semelhantes às de Victoria. “Tínhamos de dançar, beber muito e ir para o quarto com qualquer pessoa”, disse uma delas. “Comíamos uma vez por dia e dormíamos cinco a seis horas. Se não fizéssemos o que nos mandavam, os guardas batiam-nos.”
A seguir às rusgas do IPTF, Milakovic dirigiu-se à imprensa, queixando-se de que as mulheres libertadas lhe tinham custado muito dinheiro e exigindo uma indemnização, pois precisava de comprar outras. Falou também abertamente sobre as relações amigáveis mantidas com os mediadores de paz do IPTF, muitos dos quais tinham sido seus clientes.
No entanto, em Maio deste ano, nenhum amigo influente lhe valeu: a polícia local fez finalmente uma rusga ao castelo de Sherwood e prendeu Milakovic por traficar seres humanos e possuir escravos.

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Na Bósnia, Milorad Milakovic foi preso, acusado de comprar e vender mulheres através dos seus bares e bordéis. O sérvio diz que tinha membros das forças policiais das Nações Unidas e funcionários dos vistos e imigração bósnios como clientes regulares. “Há uma ligação clara entre a escravatura e a corrupção da administração pública”, afirma Corbin Lyday, antigo funcionário da Agência para o Desenvolvimento Internacional dos EUA. “Em dezenas de países, os funcionários públicos ajudam, fazem vista grossa ou entram em conluio activo com os traficantes.”

Por vezes, pensamos que a escravatura é coisa do passado e as imagens que dela temos tendem a remontar ao século XIX: trabalhadores rurais negros agrilhoados. “Nessa época, a escravatura prosperava devido à falta de mão de obra”, explica Mike Dottridge, antigo director da Anti-Slavery International, fundada em 1839 para dar seguimento à campanha que abolira entretanto a escravatura no Império Britânico. Em 1850, segundo os estudos sobre escravatura feitos pelo especialista Kevin Bales, o preço médio de um escravo elevava-se a cerca de 35.200 euros, em dinheiro actual.

“Hoje, as pessoas vulneráveis são aliciadas para a escravatura por dívidas, na esperança de uma vida melhor. Há muitos seres humanos nessas condições, porque há muita gente desesperada no mundo.”

Encontrei-me com Dottridge na sede da sua organização, um pequeno edifício no incaracterístico bairro de Stockwell, no Sul de Londres. “Naquele tempo, os negros eram raptados e obrigados a trabalhar como escravos”, diz Dottridge. “Hoje, as pessoas vulneráveis são aliciadas para a escravatura por dívidas, na esperança de uma vida melhor. Há muitos seres humanos nessas condições, porque há muita gente desesperada no mundo.”
Imagens da escravatura contemporânea vêem-se nas paredes dos gabinetes – trabalhos forçados na África Ocidental, crianças paquistanesas com cinco e seis anos conduzidas ao golfo Pérsico para servir de jóqueis em corridas de camelos, crianças tailandesas reduzidas à prostituição. Os arquivos estão a abarrotar de relatórios: grupos de escravos brasileiros na floresta tropical amazónica abatendo árvores depois transformadas no carvão que alimenta as siderurgias, trabalhadores agrícolas na Índia vinculados aos terratenentes por dívidas – herdadas dos pais e legadas aos filhos.
Embora a globalização tenha facilitado a movimentação de bens e dinheiro em todo o mundo, a compra e venda de seres humanos é um negócio rendível porque quem pretende deslocar-se para os locais onde há emprego enfrenta restrições cada vez mais rígidas em matéria de migração legal.

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No Norte da Índia, num quarto mal iluminado e sem ventilação, uma dúzia de crianças debruçadas sobre aquecimentos a gás fabrica pulseiras para vender a 40 cêntimos a dúzia. De idades compreendidas entre os 9 e os 14 anos, estas crianças trabalham dez horas por dia, todos os dias – vendidas pelos pais ao dono da oficina em troca de dinheiro. Em média, as crianças indianas são escravizadas por cerca de 30 euros.

Quem não consegue migrar legalmente, ou pagar adiantado o dinheiro exigido para passar a fronteira de forma clandestina, acaba quase sempre nas mãos das mafias de traficantes. “O tráfico ilícito de migrantes [introdução clandestina de estrangeiros que depois encontram empregos pagos] e o tráfico de seres humanos [que acaba por conduzir à escravidão ou à venda] funcionam exactamente da mesma maneira, recorrendo às mesmas vias”, diz um operacional veterano do Departamento de Imigração e Naturalização dos EUA (INS). “A única diferença é o que acontece às pessoas no fim da linha.” Uma vez que as quantias pagas a título de transporte aumentam à medida que cresce o rigor dos controlos fronteiriços, torna-se cada vez mais provável que os imigrantes ilegais fiquem em dívida com os traficantes que os transportaram. Por isso, são obrigados a trabalhar como escravos para pagar as suas obrigações.

Grigoris Lazos, professor na Universidade de Panteion, empenhou-se no que julgou ser uma investigação sem problemas, sobre a prostituição na Grécia.

Para quem vem de fora, é demasiado perigoso mostrar interesse excessivo em saber como funcionam estas mafias (dúvida que me assaltou quando estava no castelo de Sherwood). Mesmo assim, em Atenas, descobri um homem que se especializou no estudo do tráfico de escravos e conseguiu sobreviver para dar testemunho.
Em 1990, Grigoris Lazos, professor de sociologia na Universidade de Panteion, empenhou-se no que julgou ser uma investigação sem problemas, sobre a prostituição na Grécia. Vivo e enérgico, resolveu ir direito à fonte e falou com as próprias prostitutas. Por meio delas, acabou por entrar em contacto com os promotores da escravatura. Ao longo de uma década – sob forte censura dos colegas de profissão -, Lazos acedeu a informação sobre operações de tráfico, fornecendo uma descrição bem clara das interligações entre a prostituição e a escravatura no seu país.

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As dívidas condenam famílias ao cativeiro durante várias gerações. No Sudeste da Índia, mães e filhas transportam para o forno tijolos feitos à mão , enquanto pais e filhos atiçam o fogo. Os empregadores compram trabalhadores, emprestando dinheiro para despesas que eles não conseguem pagar. Apesar de trabalharem muitos anos para pagar a dívida, os juros exorbitantes e a contabilidade desonesta perpetuam o fardo, que passa de pais passam para filhos. Cerca de dois terços dos trabalhadores cativos de todo o mundo – 15 a 20 milhões – são escravos por dívidas na Índia, no Paquistão, no Bangladesh e no Nepal.

“Convém distinguir os pequenos grupos de traficantes dos grandes grupos, apoiados na Internet e em contas bancárias”, diz. “Na Grécia, qualquer proprietário de um bar ou qualquer grupo de proprietários pode enviar alguém ao Sul da Bulgária para comprar mulheres por dinheiro. Nessa região, cada rapariga custa 880 euros ou, com regateio, é possível conseguir duas pela mesma verba. Para obter um preço mais barato, é melhor negociar à segunda-feira, porque a maior parte do tráfico ocorre aos fins-de-semana. À segunda-feira, há pouco movimento e, por isso, aproveitam-se os restos.”
“Em contrapartida, as redes têm capacidade para discutir preços e realizar transações financeiras à distância”, continua. “Basta telefonar para Moscovo e encomendar uma mulher. Ela será enviada para a Roménia e daí para a Grécia, através da Bulgária. As partes nem precisam de se conhecer. O importador limita-se a dizer: ‘Quero tantas mulheres de primeira qualidade, tantas de segunda qualidade e tantas de terceira qualidade.'”

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Os pais do rapaz enviaram-no como aprendiz de mecânico para uma oficina na capital do Benin. Trabalha o dia todo, sem descanso nem salário. Não pode sair à rua sem autorização e a desobediência é punida com pancadas. Segundo Kevin Bales, director da organização Free the Slaves, a escravatura actual é caracterizada por domínio e exploração económica. O controlo sobre os escravos não se exerce com um regime legal de propriedade, mas através do que Bales chama a “autoridade decisiva da violência”.

Percorrendo os seus ficheiros exaustivos, o professor enumera os dados sobre tráfico de seres humanos. “Na Grécia, entre 1990 e 2000, o rendimento proveniente do tráfico de mulheres forçadas a este tipo de prostituição elevou-se a 4.845 milhões de euros. As prostitutas voluntárias, sobretudo mulheres gregas que trabalham por sua própria vontade, renderam 1.320 milhões de euros.”
As operações dos traficantes gregos estudadas por Lazos apresentam níveis de eficiência e de âmbito que nada têm de singular. Em Trieste, porta de acesso dos Balcãs ao Norte de Itália, os investigadores da comissão local anti-mafia seguiram as actividades de Josip Loncaric, antigo taxista da cidade croata de Zagreb.

Loncaric, estava envolvido na deslocação de milhares de pessoas destinadas a trabalhar na prostituição ou em tarefas servis que implicassem mão de obra barata no próspero universo da União Europeia.

Em 2000, Loncaric foi finalmente preso. Proprietário de companhias de aviação na Albânia e na Macedónia, estava então envolvido na deslocação de milhares de pessoas destinadas a trabalhar na prostituição ou em qualquer tarefa servil que implicasse mão de obra barata no próspero universo da União Europeia. A mulher e sócia, chinesa, assegurava a ligação com as tríades chinesas do crime, com as quais Loncaric fazia negócios chorudos, introduzindo clandestinamente chineses e, também, curdos, iraquianos e iranianos ou qualquer outras pessoa em aflição que pretendesse hipotecar-se na esperança de um futuro melhor. Muitas das vítimas chinesas de Loncaric acabaram presas e foram obrigadas a trabalhar 18 horas por dia em restaurantes ou nas famosas oficinas italianas de artigos de couro.

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A escravatura é mais fácil de definir do que de detectar. Entre os cerca de 60 mil chineses que vivem em Itália, imigrantes legais e ilegais trabalham lado a lado com escravos. As buscas em locais como esta fábrica de peles perto de Florença, são dificultadas pela barreira da língua e pelo uso de documentos falsos.

Na última década do século XX, as mafias de traficantes trouxeram para a Europa Ocidental, através da região de Trieste, 35 mil pessoas por ano, levando-as de noite pelas montanhas escarpadas e florestas que bordejam a fronteira com a Eslovénia. No entanto, este é apenas um dos muitos funis de passagem entre os mundos ricos e pobres. A milhares de quilómetros de distância, encontrei outra vaga de migrantes fugindo da América Central a caminho de El Norte, os Estados Unidos da América – onde, em última análise, poderão ser escravizados.

Na Guatemala, a fome afecta mais de meio milhão de trabalhadores do café.

As casas destes migrantes foram abaladas por guerras travadas nos anos 1980 e 1990 e posteriormente devastadas por uma série de desastres naturais e incidentes provocados pelo homem. Em 1998, o furacão Mitch assolou as Honduras e a Nicarágua: de imediato, o número de crianças sem abrigo aumentou 20% na América Central. Em 2001, El Salvador foi atingido por um terramoto de escala 7,6: grande parte da região esteve sem chuva nos últimos três anos e o preço mundial do café caiu – arruinando a indústria do café da América Central e lançando no desemprego 600 mil trabalhadores. Na Guatemala, a fome afecta mais de meio milhão de trabalhadores do café.
Muitos economistas defendem que o Acordo de Comércio Livre da América do Norte (NAFTA) fez engrossar a corrente humana que tenta dirigir-se para norte, afirmando que o milho barato dos EUA importado pelo México levou milhões de camponeses mexicanos que cultivavam milho a retirar-se do negócio e a perder as terras. Segundo os economistas, por cada tonelada de milho importada pelo México, dois mexicanos migram para os EUA.

Nas palavras de um antigo morador, nesta cidade “tudo e toda gente está à venda”.

Situada na margem do rio Suchiate, a minúscula cidade guatemalteca de Tecún Umán é o lugar onde os migrantes da América Central se reúnem para cruzar a fronteira mexicana, rumo a norte. Quem possui documentos válidos para entrar no México atravessa a ponte sobre o rio; quem não os tem, paga alguns cêntimos para ser transportado em jangadas feitas com câmaras de ar de pneus de tractor.
Venham de onde vierem, a maioria dos migrantes chega a Tecún Umán sem um tostão no bolso, tornando-se presas fáceis para os donos de hotéis e bares e os passadores – conhecidos por coiotes – que vivem à custa do fluxo desta corrente humana. Nas palavras de um antigo morador, nesta cidade “tudo e toda gente está à venda”.
Mais afortunados, alguns migrantes encontram temporariamente refúgio seguro na Casa del Migrante, um recinto murado a poucos metros de distância da margem lodosa do rio. “Todos os dias, de manhã e à noite, faço aqui um discurso”, declara o director da Casa, o padre Ademar Barilli, um jesuíta brasileiro surpreendentemente esperançado, apesar da miséria que o rodeia. “Previno-os sobre os perigos da viagem para norte e incito-os a voltar para trás. Regressar a casa não é uma boa opção, mas tentar entrar nos EUA ainda é pior.”

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“Tenho de acreditar que isto pode mudar”. É o que afirma a assistente social Marisa Ugarte. Fala calmamente sobre três rapazes que vivem num refúgio mexicano – um com 12 e os outros dois com menos de 15 anos. Todos fizeram viagens entre Tijuana e San Diego, na Califórnia, prostituindo-se com pedófilos. Marisa dirige a Bilateral Safety Corridor Coalition, uma rede de 62 organizações norte-americanas e mexicanas que combatem o tráfico de seres humanos. “O mundo está a começar a ver que a escravatura ainda é real”, diz Marisa.

Barilli explica-lhes que existem patrões, no México, que podem reter os seus preciosos documentos de identidade e obrigá-los à escravatura em plantações distantes. Fala-lhes dos bordéis de Tapachula, a cidade mexicana do outro lado do rio, onde as raparigas são obrigadas a prostituir-se. Porém, a maioria não ouve os seus conselhos, lembrando-se da miséria que deixou para trás. Quando perguntam Adriana, uma prostituta de 14 anos de um bar em Tapachula, se põe a hipótese de voltar às Honduras, ela exclama: “Não. Lá morre-se de fome!”

“Dizem-lhes que há trabalho num restaurante, só que esse trabalho é num bar. Depois de a rapariga trabalhar algum tempo a servir bebidas, o dono denuncia-a à polícia […] Ela vai para a prisão, ele paga-lhe a fiança e, depois, diz-lhe que ela ficou em dívida e tem de trabalhar como prostituta. A dívida nunca termina e, por isso, a rapariga torna-se escrava.”

Apesar de Barilli e da Casa del Migrante, Tecún Umán não é um local seguro. Na semana anterior à minha chegada, um coiote morto fora lançado na rua, mesmo junto ao portão do recinto, com dezenas de balas no corpo. “Aqui, morre-se por causa do tráfico de adultos e de bebés. Há muitas mafias implicadas no negócio desta cidade. “Aquí uno no sale en la noche” (“Aqui não se sai à noite”), diz Barilli.
Enquanto calculo o tempo que falta para o anoitecer, Barilli explica o que os proprietários de bares da região costumam dizer às raparigas que todos os dias chegam de autocarro vindas do Sul. “Dizem-lhes que há trabalho num restaurante, só que esse trabalho é num bar. Depois de a rapariga trabalhar algum (pouco) tempo apenas a servir bebidas, o dono denuncia-a à polícia e provoca a sua prisão por não ter documentos: ela vai para a prisão, ele paga-lhe a fiança e, depois, diz-lhe que ela ficou em dívida e tem de trabalhar como prostituta. A dívida nunca termina e, por isso, a rapariga torna-se escrava.”
Barilli cita um caso recente que envolveu um bar denominado La Taverna, na via rápida à saída da cidade. A proprietária tinha atraído seis raparigas para a prostituição. “Algumas ficaram grávidas e ela vendeu os bebés”, conta. Graças em parte aos esforços de um trabalhador leigo da Casa del Migrante (que depois teve de se esconder devido a uma torrente de ameaças de morte, bastante credíveis), a dona do bar acabou por ser detida e presa.

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Um refúgio salvou dez mil crianças prostitutas. A socióloga Lois Lee, à direita, passou 24 anos a trabalhar com crianças de idades compreendidas entre os 11 e 17 anos, traficadas por pederastas. Uma jovem residente, à esquerda, foi obrigada a prostituir-se nos estados de Oregon, Washington, Idaho e Nevada, antes de escapar ao seu captor. “A exploração sexual das crianças americanas abrange todas as classes económicas, étnicas e sociais”, explica Lois. “Não é um problema apenas do Terceiro Mundo.”

O aumento da segurança verificado após os acontecimentos de 11 de Setembro tornou a fronteira entre os EUA e o México – principal obstáculo na estrada para sul – ainda mais difícil de ultrapassar. O reforço do controlo provocou um aumento proporcional dos preços de travessia cobrados pelos grupos de “passadores”, que subiram de cerca de 880 para 1.762 mil euros por pessoa, em média. À chegada, os sobreviventes da jornada ficam profundamente endividados e vulneráveis aos traficantes.

Juan Muñoz é uma figura real, que deixou a sua pequena quinta epor não conseguir ganhar dinheiro para alimentar a família. Uma vez transposta a fronteira, descobriu que de facto ingressara na moderna economia esclavagista.

Em Immokalee, na Florida, sento-me numa sala cheia de homens e mulheres com feições características dos maias, idênticas às que vi nos rostos de Tecún Umán. São quase todos trabalhadores agrícolas que labutam arduamente nas grandes plantações da Florida, colhendo as frutas e legumes consumidos em todos os EUA. Reúnem-se na sede de uma organização agrícola, a Coligação dos Trabalhadores de Immokalee (CIW), para discutirem formas de melhorar as condições de trabalho das suas mal pagas funções. Depois de esmorecer a conversa, travada em espanhol rápido, um homem mais velho pega numa guitarra e começa a cantar uma canção que fala em Juan Muñoz, partido de Campeche, no México, “para procurar fortuna nos EUA”, mas que acabou em Lake Placid, na Flórida, trabalhando “como escravo” para um patrão cruel que lhe roubou o dinheiro.
Também os cantores de blues compuseram lamentos semelhantes sobre a vida miserável que levavam nas plantações do Sul dos EUA, canções que consideramos pertencerem ao nosso património. Porém, esta canção não se refere ao passado: Juan Muñoz é uma figura real, um homem de 32 anos que deixou a sua pequena quinta em Campeche por não conseguir ganhar dinheiro suficiente para alimentar a família. Uma vez transposta a fronteira, chegou a Marana, no Arizona, onde um coiote lhe prometeu boleia até à Florida, onde arranjaria trabalho a apanhar laranjas. A boleia custou 880 euros e foi-lhe dito que poderia ir pagando ao longo do tempo. À chegada, contudo, descobriu que de facto ingressara na moderna economia esclavagista.

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Após um dia de trabalho, os trabalhadores agrícolas reúnem-se para pôr fim aos abusos laborais no sul da Florida. Formada sobretudo por imigrantes do México, Guatemala e Haiti, a Coligação dos Trabalhadores Immokalee (CIW) já libertou muitos dos seus mais de dois mil membros de cinco explorações da Florida onde era usado trabalho escravo em larga escala. A CIW calcula que cerca de 10% dos trabalhadores agrícolas dos EUA estão escravizados e que os restantes recebem salários de miséria.

A via rápida n.º 27 atravessa as culturas de citrinos, no coração da Florida, que abastecem 80% do sumo de laranja dos EUA. A maioria dos apanhadores que trabalham nos campos à beira da estrada são imigrantes. Muitos não têm documentos e todos são pobres. Recebem em média 1.320 euros por ano, por um trabalho duro e pouco saudável, labutando para patrões com quem os produtores celebram contratos para lhes fornecerem grupos para a apanha da laranja. Por norma, a lei deixa-os sem amparo, desde que façam o trabalho mal pago mas necessário nos campos.

Más condições [de trabalho] provocam uma rotação dos trabalhadores, pois os que encontram alternativas rapidamente se vão embora. Daí que os patrões prefiram recorrer a grupos de escravos por dívidas, cuja estabilidade e docilidade está garantida.

As duras condições de trabalho no campo são praticamente inevitáveis, uma vez que as empresas que adquirem a produção são suficientemente poderosas para manterem baixos os preços de compra, garantindo assim que os salários pagos aos apanhadores pelas empresas responsáveis pela colheita permaneçam igualmente baixos. Estas más condições provocam uma rotação dos trabalhadores, pois todos os que encontram alternativas laborais rapidamente se vão embora. Daí que os patrões prefiram recorrer a grupos de escravos por dívidas, cuja estabilidade e docilidade está garantida. Foi assim que Juan Muñoz deu por si cativo, juntamente com pelo menos mais 700 pessoas, a trabalhar em campos guardados pela família Ramos, nos arredores da pequena cidade de Lake Placid.
“Quase todos foram apanhados no Arizona por coiotes que se ofereceram para os levar até à Florida, vendendo-os posteriormente”, diz Romeo Ramirez, um guatemalteco de 21 anos que se infiltrou para investigar para a CIW o negócio montado pela família Ramos.

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Uma greve da fome realizada em Março de 2003 na sede da Taco Bell sensibilizou o mundo para os problemas relacionados com o trabalho agrícola. “Um cêntimo a mais por taco pode significar o dobro do salário actual para os apanhadores de tomate”, diz o membro da CIW Lucas Benitez (em cima, à esquerda). Com um pequeno aumento do custo para o consumidor, as empresas como a Taco Bell podem pagar mais por produção e os fornecedores podem ficar menos tentados a baixar os custos de produção através do uso de escravos.

Nos oito campos localizados em Lake Placid e arredores, os cativos viviam “em quartos de quatro pessoas, horrivelmente malcheirosos, dormindo em camas sem colchão”. Não é de espantar que os trabalhadores tivessem medo dos patrões. “Todos sabiam que seriam espancados se tentassem fugir”, diz Ramirez, referindo-se ao boato que correu sobre um homem que tentou escapar e a quem “quebraram os joelhos com um martelo, atirando-o depois para fora do carro a cem quilómetros à hora.
“Os produtores pagavam aos trabalhadores todas as sextas-feiras, mas a seguir levavam-nos às lojas da família Ramos e obrigavam-nos a entregar os cheques”, continua Ramirez. “Mesmo depois de pagarem a renda e a comida, a dívida aumentava.” Uma dessas lojas, a Natalie’s Boutique, fica a um quarteirão do posto de polícia.

As equipas de escravos trabalhavam à vista de toda a gente: o campo principal, onde a família Ramos fechava as suas vítimas, ficava à beira da cidade.

Em Abril de 2001, uma equipa da CIW ajudou a fugir quatro trabalhadores cativos, entre os quais Muñoz. Convencidos a agir pelo testemunho inequívoco dos foragidos, o FBI e o INS montaram uma rusga – mas o demasiado visível emblema do “Serviço de Deportação INS”, colocado na carrinha que acompanhava o grupo de assalto, foi suficiente para que os patrões da quadrilha mandassem os trabalhadores esconder-se nos laranjais dos arredores de Lake Placid. Mesmo assim, os irmãos Ramiro e Juan Ramos, juntamente com o seu primo José Luis Ramos, acabaram por ser acusados de tráfico de escravos, extorsão e posse de armas de fogo. Em Junho de 2002, os três membros da família Ramos foram condenados por todas as acusações a penas de prisão que no total ascenderam a 34 anos e 9 meses.
Talvez as empresas clientes dos Ramos desconhecessem este negócio de escravatura do século XXI, ou talvez as agências federais não fossem suficientemente rápidas a reagir aos avisos da CIW. Seja como for, as equipas de escravos trabalhavam à vista de toda a gente: o campo principal, onde a família Ramos fechava as suas vítimas, ficava à beira da cidade, mesmo ao lado da Hospedaria Ramada. Em frente ao complexo, o condomínio fechado de Lakefront Estates proporcionava aos idosos um ambiente aprazível.

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Nos países em desenvolvimento, dezenas de milhar de mulheres e raparigas transformaram-se em produtos do comércio de sexo. Devido a usos tradicionais das suas comunidades, outras jovens não têm direito a fazer opções elementares, relativamente ao casamento e à gravidez. Embora os casamentos à força sejam denunciados pela Organização das Nações Unidas como forma de escravatura e quase todos os países tenham estabelecido idades legais mínimas para o casamento, os costumes locais continuam a desafiar a lei. No povoado de Bembe, no Benin, todas as mulheres e crianças comparecem perante o chefe da aldeia. “São poucas as raparigas da aldeia que chegam aos 18 anos sem se casar”, afirma Hector Gnonlonfin, fundador “Tomorrow Children”, um abrigo para crianças exploradas. “Encontrámos uma rapariga de 10 anos que já tinha marido.” Para a família da noiva, o preço a pagar por um noivo mais velho pode representar a diferença entre morrer à fome e sobreviver. Mas para a saúde de uma rapariga, as consequências de um casamento precoce podem fatais: segundo a Organização Mundial de Saúde, as raparigas com menos de 15 anos têm 15 vezes mais probabilidades de morrer devido a complicações da gravidez do que mulheres com mais de 20 anos.

“Os escravos de Lake Placid eram invisíveis, peças da nossa economia que se desenvolve num universo paralelo”, afirma Laura Germino, da CIW. “Enquanto os membros da comunidade de reformados jogavam golfe, mesmo ali por detrás havia um campo de escravos. Dois mundos, falando línguas diferentes.”
A verdade é que a operação contra os Ramos foi o quinto caso de escravatura agrícola descoberto na Florida nos últimos seis anos – todos eles denunciados graças à CIW, que actualmente promove um boicote ao potentado da comida rápida Taco Bell, em defesa dos apanhadores de tomate. A empresa gaba-se de tomar medidas de protecção aos animais nos negócios que mantém com os seus fornecedores, e os seus responsáveis afirmam igualmente que exigem o cumprimento das leis laborais. Porém, alegam que não podem controlar as práticas laborais dos seus fornecedores e contam com os organismos responsáveis pela aplicação da lei para garantir esse cumprimento.

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Por vezes, o sacrifício físico apresenta-se como a única solução: estas mulheres de Villivakkam, no sul da Índia, cuja alcunha é “aldeia dos rins”, trocaram um rim por dinheiro. Com cerca de 20 anos na época em que aceitaram fazê-lo, ansiosas para pagar as sufocantes dívidas familiares, estas mulheres foram alvos fáceis para os agentes de transplantes que prometeram cerca de 880 euros por cada órgão. Embora recebessem metade do dinheiro adiantado, não receberam o resto da quantia. A Índia proibiu o comércio de órgãos humanos, mas isso não fez parar o tráfico. Para estas mulheres, a dor não cessou: três foram abandonadas pelos maridos, que as consideraram bens danificados. Nas suas palavras, só lhes restam as cicatrizes.

Hoje em dia, a escravatura e o tráfico de escravos nos EUA ultrapassam em muito o âmbito da agricultura, abrangendo praticamente todas as áreas da economia necessitadas de mão de obra barata. Em 1995, foram salvas 70 mulheres tailandesas, depois de trabalharem anos a fio cercadas de arame farpado no subúrbio de El Monte, em Los Angeles, fabricando roupas para importantes operadores retalhistas, até que os agentes da lei federais e estaduais conseguissem obter o mandato de busca adequado para revistar as instalações. Em Junho de 2000, em Yakima, no estado de Washington, os agentes federais prenderam os proprietários de uma empresa de venda de gelados, acusando-os de utilizar escravos mexicanos para vender gelados nas ruas da cidade, trabalhando para pagar dívidas. Segundo Kevin Bales, existem actualmente nos EUA entre 100 e 150 mil escravos.

A aprovação pelo Congresso dos EUA da Lei de Protecção às Vítimas de Tráfico e Violência, que impede a deportação de escravos se testemunharem contra os antigos proprietários, ajudou a atenuar o medo.

De acordo com o Departamento de Estado, todos os anos são traficadas cerca de 20 mil seres humanos nos EUA, muitos dos quais acabam na prostituição ou no trabalho rural. Alguns trabalham em lares, enquanto outras sofrem a sua servidão sozinhas, como escravos domésticos confinados em casas particulares.
Em 2000, a aprovação pelo Congresso dos EUA da Lei de Protecção às Vítimas de Tráfico e Violência, que impede a deportação de escravos caso estes testemunhem contra os antigos proprietários, ajudou provavelmente a atenuar o medo. O crescimento de organizações dispostas a prestar ajuda – como a CIW, ou a Coligação para a Abolição da Escravatura e Tráfico (grupo do Sul da Califórnia que já prestou assistência a mais de 200 pessoas) – significa que as vítimas não estão sós. Regra geral, há mais sensibilização para o problema.

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Panneer tem 10 anos. Trabalha 14 horas por dia numa fiação em Kanchipuran, na Índia. Os seus dedos sangram. E o seu corpo vai sendo envenenado pelas tintas. Milhares de crianças-escravas trabalham na indústria têxtil indiana.

Mesmo assim, muitos destes cativos encontram-se indefesos em todo o mundo: sofrem ameaças, vivem com medo de serem deportados e não têm acesso a qualquer fonte de aconselhamento ou apoio porque não podem comunicar com o mundo exterior. Pior, porém, é que este universo paralelo, como lhe chamou Laura Germino, pode proporcionar negócios muito lucrativos. Antes de condenar a família Ramos, o juiz K. Michael Moore ordenara o confisco de 2,6 milhões de euros acumulados pelos irmãos com a sua actividade, bem como outros bens.
Moore apontou também um dedo acusador às empresas agrícolas que contrataram os trabalhadores dos Ramos. “Segundo parece, neste sistema de apanha da fruta, há gente de outro nível – mais elevado – que em certa medida é cúmplice, de alguma forma, da maneira como estas actividades são desenvolvidas”, afirmou.
A antiga escrava Julia Gabriel, hoje jardineira paisagística na Florida e membro da CIW, recorda a sua chegada aos EUA vinda da Guatemala, aos 19 anos: na Carolina do Sul, apanhou pepinos debaixo de escolta armada, durante 12 a 14 horas por dia, vendo companheiros cativos a serem espancados à coronhada até ficarem inconscientes. “Talvez isto seja normal nos EUA”, pensou. Mas houve um amigo que lhe disse, “não, isto não é normal aqui”, e, assim, Julia conseguiu arranjar coragem para fugir.

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Este bebé não é um escravo. Porém, como está numa caixa de cartão e cresceu numa barraca de chapa ondulada, a vida deste rapaz da Guatemala começa com escassas probabilidades pela frente. Pode ser roubado ou vendido e depois adoptado ilegalmente, no âmbito de um processo internacional transformado em negócio rendível para alguns advogados guatemaltecos que agem como intermediários.
Também pode tornar-se uma das 44% de crianças guatemaltecas que crescem padecendo de subnutrição; ou uma das 80% que vivem em habitações sem lavabos, nem sistema de recolha de lixo; ou das 40% que chegam à idade adulta sem saber ler ou escrever. A pobreza que aflige a maioria das família da Guatemala é a regra, não a excepção. Três mil milhões de pessoas – quase metade da população mundial – lutam pela sobrevivência com menos de dois euros por dia. Terríveis provações podem levar os mais pobres a vender os seus bens, os seus corpos saudáveis ou os dos seus filhos.

“Este devia ser o país para onde se foge da servidão e não onde o recém-chegado se torna novamente escravo quando chega”, diz o ministro da Justiça John Ashcroft. Porém, alguns historiadores sustentam que o infame comércio de escravos transatlântico que enviou milhões de africanos para o Novo Mundo só foi abolido depois de esgotar o seu interesse económico.
Os mercadores de escravos de hoje, do castelo de Sherwood à soalheira Florida – com muitas centenas de lugares pelo meio – descobriram de novo os lucros da compra e venda de seres humanos. Em pleno século XXI, a escravatura está longe de ter desaparecido