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129. CRÓNICA 129, DA MINHA JANELA, 13 maio 2013
Das ameias do meu castelo, desta janela aberta sobre o mundo vi muita coisa e continuo a ver um planeta em permanente mudança. São os vaqueiros que passam a cavalo, em carroça ou em carrinha rumo às suas vacas e aos depósitos de leite, logo pelas cinco e meia ou seis da manhã em rotinas que se repetem – duas ou três vezes ao longo do dia – até ao anoitecer quando regressam dos pastos pela última vez.
Vejo tratores mais apropriados ao celeiro do oeste norte-americano, às pradarias ou aos vastos terrenos da Extremadura espanhola do que ao minifúndio micaelense, depois há uns menos gigantescos mas demasiado grandes para estas terras minúsculas, e mais pequenos …mas todos grandes, enormes para as pequenas parcelas de terra aqui na Lomba da Maia.
Vejo as crianças barulhentas que voltam da escola primária ou da catequese, a correr, aos berros, à pancada umas com as outras, desobedecendo a mães e avós, a atirarem papéis para a rua, a comportarem-se como pequenas bestinhas que irão ser quando crescerem, saltando para o meio da rua impérvias ao trânsito e à vida que lhe podem roubar a cada momento.
Vejo anciãs de xaile ou lenço na cabeça lenta, mais parecem daguerreótipos do séc. XIX, enquanto vagarosamente sobem a rua rumo aos deveres eclesiásticos da fé, sejam missas, novenas, enterros ou procissões. Parecem viúvas a viver num mundo que já não existe e elas não compreendem a realidade em que estão inseridas…Imagens tiradas doutras eras falando de um passado ancestral imutável durante séculos e que ora deu um pulo para o espaço sideral.
Vejo pela janela entreaberta da casa em frente uma televisão sempre a debitar telenovelas e quejandos, entretendo os anos de vida que faltam à moradora citadina que aqui se desloca em feriados, férias e fins de semana…Desta janela não vejo, na casa ao lado, o marido que bate na mulher, mas observo a mulher que bate nos filhos, (bem casada ou mal casada?) que não cessa de entrar e sair para falar com todos os homens da aldeia, mais os fornecedores do pão, da fruta, da carne, das roupas e todos os restantes fornecedores das carrinhas que aqui aportam diariamente para venderem os seus produtos. Ela aguarda, aperaltada, que o marido siga para as vacas e vai lampeira em busca de um homem que a ouça e à sua língua viperina, vivendo no quotidiano os sonhos imaginados das telenovelas que lhe enchem as noites.
Há mais homens e mulheres assim, rua abaixo e em outras ruas, em freguesias perto e longe. Da janela vejo aos domingos os homens com fatiotas melhoradas encostados à porta da igreja ou a beberem uns copos na taberna mais próxima. São os mesmos que não entram na igreja o ano todo, mas depois se fazem à estrada como romeiros, arrostando com frio, chuva e outras privações. Os que escapam sempre, sobre quem não impendem acusações de violência doméstica, de pedofilia, de toda a espécie de abusos, de alcoolismo mas que cumprem religiosamente tradições ancestrais que nem sabem explicar nem compreender.
Vejo enterros, procissões, casamentos, crismas e batismos (cada vez menos), vendedores (avulso) de cracas e lapas, vendedores de tudo e mais alguma coisa em carrinhas barulhentas na sua distribuição e aliciamento de clientes em tempo de crise. Vejo os montes ora verdes, ora verdes, ou, então verdes, consoante a estação do ano, e as culturas do que lá se planta, ora vazios, ora com vacas alpinistas todo o ano.
Mas o que nunca vi desta janela foi alguém a ler um livro…
Boa crónica. Infelizmente, uma certeiríssima observação.
o.