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O affair Ryanair tem reacendido um debate que, na verdade, nunca deixou de existir, sobre que turismo queremos para os Açores e que modelo de desenvolvimento estamos dispostos a assumir? É o eterno confronto entre vantagens e desvantagens, riscos e receitas, “turismo de qualidade” versus “turismo low-cost”, seja lá o que isso for. De um lado, e eu incluo-me nesse lado, há aqueles que veem no turismo um dos pilares fundamentais do desenvolvimento económico do arquipélago. Do outro, há quem encontre no turismo a origem de todos os males contemporâneos, da inflação à gentrificação, da pressão sobre a capacidade de carga do território à massificação do destino.
O mais curioso é que os estudos de opinião feitos nos últimos anos mostram que a grande maioria dos açorianos, afinal, tendem a ter uma visão globalmente positiva do turismo. De forma consistente, os residentes reconhecem o contributo do setor para o emprego, para a economia, para o rendimento disponível e para o investimento. E vão mais longe, valorizam o impacto do turismo na oferta cultural, no artesanato e no património. Naturalmente, também identificam riscos, subida de preços, escassez de habitação acessível e pressão sobre a paisagem e os recursos naturais. Mas, em geral, a percepção pública sobre o turismo é ela mesma equilibrada e informada.
Ainda mais interessante é que muitos inquiridos apontam o planeamento, ou a falta dele, como o fator determinante para o sucesso ou insucesso do turismo. Ou seja, os açorianos reconhecem que a sustentabilidade turística está diretamente ligada à capacidade de planear, regular e antecipar. E é precisamente aqui que entra o episódio Ryanair.
Para se compreender onde chegamos e como aqui chegamos, convém recuar a 2015, ao momento em que se iniciou a liberalização, ou, mais precisamente, a “semi-liberalização” das rotas Lisboa/Porto–Ponta Delgada/Terceira. Eu lembro-me bem desse período porque era então Coordenador de Promoção da ATA/VisitAzores e acompanhava, mesmo que a partir da margem, as discussões entre dois polos que pareciam irreconciliáveis. De um lado, o Governo ultra-liberal pós-troika de Passos Coelho, com o inesquecível Secretário de Estado dos Transportes, Sérgio Monteiro. Do outro, o primeiro Governo de Vasco Cordeiro, com Vítor Fraga na tutela do Turismo e Transportes.
A República defendia a abertura total do mercado, numa lógica puramente ideológica, e totalmente desconhecedora da realidade local, que via na liberalização a chave para aumentar fluxos e dinamizar a economia. A Região, por seu lado, temia os impactos na mobilidade dos residentes, horários, serviços mínimos, tarifas, e, claro, a sobrevivência da SATA, já então numa posição difícil e débil. Mas, para nós, os técnicos que estavam no terreno, havia ainda outra preocupação, a capacidade real do destino para absorver um aumento súbito da procura. Teríamos oferta suficiente? Recursos humanos? Estruturas? Legislação adequada? Ou seja, estaria o arquipélago preparado para um choque liberalizador como aquele que o Ministro Pires de Lima propunha com a sua arrogância anarco-capitalista?
E é aqui que chegamos ao presente e à anunciada, ou ameaçada, não importa, saída da Ryanair dos Açores. Em 2015, as nove ilhas somavam cerca de 12 500 camas. Hoje, são mais de 40 000, e continuam a crescer. Um aumento de 220% em apenas dez anos. As ligações aéreas passaram de 8 companhias para 14 (+ 75%), mas as rotas do continente pouco mudaram, entraram Ryanair e EasyJet, que saiu logo de seguida, e agora a Ryanair ameaça sair. No mesmo período, o número de hóspedes passou de 400 mil e 1,2 milhões de dormidas, para 1,2 milhões de hóspedes e 4 milhões de dormidas. Crescimentos de 200% e 230%, respetivamente. Entretanto, a ATA, hoje apenas VisitAzores, viu descer o seu orçamento de 60 milhões para cerca de 15 milhões, uma quebra de 75%.
Estes números, que podem parecer áridos, mostram duas coisas: primeiro que crescemos rápido demais e segundo que investimos mal. E a preocupação que tínhamos em 2015 confirmou-se, o destino tornou-se estruturalmente frágil, altamente dependente de poucos players e excessivamente exposto a flutuações externas.
Ser um destino sustentável, num arquipélago, depende primeiro de aviões. Sem aviões não há turistas; sem turistas não há destino. Mas depende também da qualificação da oferta, da preservação dos recursos, da diversificação dos mercados, e da qualidade de vida dos residentes. Não se trata de demonizar o turismo, eu próprio vivo dele. Trata-se de reconhecer que crescemos de forma desequilibrada, movidos por ambição, em alguns casos por pura cobiça, e sem um plano para o “dia seguinte”.
Em economia existe um conceito interessante chamado de “ilusão do crescimento”. Basicamente, os números a subir mascaram deteriorações profundas. Crescer não significa, por si só, desenvolver. Por exemplo, aumentar camas não é o mesmo que aumentar valor. Multiplicar dormidas não é garantir riqueza, nem a sua redistribuição, nem o bem-estar das comunidades residentes no destino. Quando o crescimento estatístico se sobrepõe ao desenvolvimento real, abre-se caminho para perigosas regressões económicas. Como todos bem sabemos…
E foi exatamente isso que nos aconteceu. Como este episódio atual demonstra à exaustão. A proliferação de alojamento, mais de metade dele em Alojamento Local, não veio acompanhada por ligações aéreas estáveis, mercados diversificados ou promoção consistente. Criou-se um ecossistema turístico em que a oferta depende de um fio finíssimo e vulnerável. E bastou um espirro do Sr. O’Leary para constipar a região inteira.
Recentemente, mão amiga fez-me chegar um artigo de opinião do Dinheiro Vivo defendendo que a saída da Ryanair poderia ser positiva, permitindo transformar os Açores num destino exclusivo, orientado para turismo “de qualidade”. Em abstrato, todos concordamos com esta ambição. Na prática, esse barco já zarpou quando, em 2015, se optou por um modelo de crescimento assente exclusivamente na quantidade. Foi uma escolha política e ideológica, liderada por Pires de Lima e Sérgio Monteiro coadjuvados, do lado turístico, por Adolfo Mesquita Nunes, de boa memória, diga-se, e João Cotrim de Figueiredo, pasme-se. O resultado foi a consolidação de um modelo que não se inverte com um estalar de dedos ou por mera narrativa de opinião.
Hoje, com o número de camas, restaurantes e serviços existentes, e com uma sazonalidade cada vez mais marcada, não temos margem para perdas abruptas de procura sem provocar danos profundos no tecido económico local, um tecido que ainda não recuperou totalmente das sequelas da pandemia do Covid-19.
Convém também desfazer um mito. O passageiro low-cost não é sinónimo de passageiro “pé-rapado”. Tratam-se, muitas vezes, de viajantes informados, que preferem pagar menos pela viagem para gastar mais no destino. As low-cost equilibram os preços, combatem a sazonalidade, ampliam mercados e garantem fluxo suficiente para sustentar toda a cadeia turística, desde o hostel urbano ao boutique hotel temático.
A ideia de transformar os Açores numa “Riviera do Atlântico” é uma utopia simpática, mas irrealista a curto prazo. Não temos o clima, não temos ainda a oferta, e ninguém está disposto a investir durante uma década para que esse ideal aconteça enquanto, no imediato, restaurantes, hotéis e empresas de animação fecham portas lançando dezenas, se não centenas, de pessoas no desemprego. O único caminho possível é a diversificação. Vários mercados, vários perfis de turistas, e várias ligações aéreas sendo que necessariamente algumas delas, e de preferência mais do que uma, low-cost.
O futuro do turismo nos Açores não se faz com romantismos ideológicos, mas com pragmatismo. Com os pés na terra, as mangas arregaçadas e uma estratégia clara. Não é uma low-cost que nos desvaloriza; é a nossa incapacidade de criar um destino tão sólido que nenhuma low-cost se sinta confortável em nos abandonar.
